Jiddu Krishnamurti (*)
SERPENTENANDO DE UM LADO ao outro do
vale, a trilha passava por uma pequena ponte, a água, de corrente veloz, estava
barrenta pelas recentes chuvas. Rumo ao norte, ela passava por suaves encostas
até alcançar uma aldeia isolada. Essa aldeia e seus habitantes eram muito
pobres. Os cães estavam sujos e latiam à distância, nunca se arriscando a
chegar perto, as caudas baixas, as cabeças erguidas, prontos para fugir. Muitas
cabras estavam espalhas pela encosta, balindo e comendo os arbustos silvestres.
Era uma campina maravilhosa, verde, com montes azulados. O granito que se
projetava dos topos dos morros fora lavado pelas chuvas de incontáveis séculos.
Esses montes não se elevavam tanto, mas eram muito antigos, e tinham uma beleza
fantástica no contraste com o céu azul, aquele estranho encanto do tempo
imensurável. Eram como os templos que o homem constrói à sua semelhança, em seu
anseio por alcançar o céu. Mas, naquela noite, com o sol poente acima, as
colinas pareciam muito próximas. No extremo sul, uma tempestade se formava, e
os relâmpagos entre as nuvens davam à terra um atmosfera estranha. A tempestade
irromperia durante a noite; mas os montes sobreviveram às tempestades de tempos
imemoriais, e sempre estariam lá, para além de toda a labuta e sofrimento do
homem.
Os aldeões estavam retornando às suas
casas, cansados após um dia de trabalho nos campos. Logo poderíamos ver fumaça
subindo de suas cabanas enquanto eles preparavam a refeição da noite, que não
seria abundante. Os filhos, à espera de sua refeição, sorriam quando passávamos.
Tinham os olhos arregalados e tímidos dos desconhecidos, mas amigáveis. Duas
meninas apoiavam bebês em seus quadris enquanto as mães cozinhavam; os bebês
escorregavam e logo eram puxados de volta. Embora tivessem 10 ou 12 anos, essas
meninas já estavam habituadas a segurá-los; e ambas sorriam. A brisa noturna
corria entre as árvores e o gado era recolhido para a noite.
Não havia qualquer outra pessoa naquela
trilha, nem mesmo um solitário aldeão. A terra, subitamente, parecia vazia,
estranhamente silenciosa. A jovem lua nova acabava de aparecer sobre as escuras
colinas. A brisa parou, nenhuma folha se movia; tudo era quieto, e a mente
estava completamente só. Não era solitária, isolada, encerrada em seus próprios
pensamentos, mas só, intocada, incontaminada. Não era apática e distante,
desligada das coisas da Terra. Estava só, e, ainda assim, como tudo; por estar
só, tudo era nela. Aquilo que é separado conhece a si mesmo como separado; mas essa
solitude não conhecia separação, nenhuma divisão. As árvores, o córrego, o
aldeão chamando à distância, todos estavam contidos nela. Não era uma
identificação com o homem, com a Terra, pois toda identificação desaparecera
por completo. Nessa solitude, cessara o sentido da passagem do tempo.
Eram três: um pai, seu filho e um
amigo. O pai provavelmente estava na casa dos 50 anos, o filho tinha cerca de 30
e o amigo era de idade incerta. Os dois homens mais velhos eram carecas, mas o
filho ainda tinha muitos cabelos. Tinha uma cabeça de bonito formato, o nariz
um tanto curto e olhos bem separados. Seus lábios eram inquietos, embora ele
permanecesse calmamente sentado. O pai se sentou atrás do filho e do amigo,
dizendo que tomaria parte na conversa se necessário, mas que, caso contrário,
apenas observaria e escutaria. Um pardal chegou à janela aberta e logo partiu
novamente, assustado com tantas pessoas na sala. Ele conhecia aquela sala e,
muitas vezes, se empoleirava no peitoril, piando baixo, sem medo.
“Embora meu pai talvez não participe da
conversa”, o filho começou, “ele deseja estar a par dela, pois o problema
preocupa a todos nós. Minha mãe também teria vindo se não estivesse passando
tão mal, e está ansiosa para ouvir o que lhe contaremos. Lemos algumas coisas
que você disse, e meu pai já compareceu a algumas de suas palestras como
ouvinte; mas foi apenas no último ano que de fato me interessei pelo que você
diz. Até recentemente, a política absorvia a maior parte de meu interesse e
entusiasmo; mas comecei a ver a imaturidade dela. A vida religiosa é apenas
para a mente madura, e não para políticos e advogados. Tive bastante sucesso
como advogado, mas já não trabalho nessa área, pois quero dedicar os anos
restantes de minha vida a algo muitíssimo mais importante e valoroso. Falo
também por meu amigo, que quis nos acompanhar quando soube que o visitaríamos.
Veja bem, senhor, nosso problema é o fato de que estamos todos ficando velhos.
Mesmo eu, apensar de ser relativamente jovem, estou chegando àquele período da
vida em que o tempo parece voar, quando um dia parece tão curto e a morte, tão
perto. A morte, pelo menos no momento, não é um problema; mas a velhice é.”
O que você entende por velhice?
Refere-se ao envelhecimento do organismo físico ou da mente?
“O envelhecimento do corpo é
naturalmente inevitável, ele se gasta por uso e doença. Mas a mente precisa se
deteriorar e envelhecer?”
Pensar especulativamente é inútil e
perda de tempo. A deterioração da mente é uma suposição ou um fato real?
“É um fato senhor. Estou ciente de que
minha mente está ficando velha, cansada; ocorre uma lenta deterioração.”
Não será este também um problema entre
os jovens, embora eles talvez ainda não estejam cientes disso? Suas mentes já
estão confinadas num molde; seu pensamento já está encerrado num estreito
padrão. Mas a que você se refere quando diz que sua mente está envelhecendo?
“Ela não é tão maleável, tão alerta,
tão sensível como costumava ser. Sua atenção está diminuindo; suas respostas
para os muitos desafios da vida partem cada vez mais do arcabouço do passado.
Está se deteriorando, funcionando cada vez mais dentro dos limites da sua
própria criação.”
Pois bem, o que faz com que a mente se
deteriore? É autodefesa e resistência a mudança, não é? Cada um tem um
interesse pessoal que vive protegendo – consciente ou inconscientemente –,
vigiando, e que não permite que nada venha a perturbar.
“Você quer dizer um interesse pessoal
em posses?”
Não só em possuir, mas em relações de
qualquer tipo. Nada pode existir em isolamento. A vida é relacionamento; e a
mente tem um interesse egotista em sua relação com as pessoas, as ideias e as
coisas. Esse egotismo, e a recusa em gerar uma revolução fundamental dentro de
si, é o início da deterioração mental. A maioria das mentes é conservadora,
resistente à mudança. Mesmo a mente supostamente revolucionária é conservadora,
pois, quando alcança seu sucesso revolucionário, também resiste à mudança; a
própria revolução se torna seu interesse egotista. Embora ela talvez permita
certas modificações nas margens de suas atividades, resiste a todas as mudanças
no centro, não importando se é conservadora ou supostamente revolucionária. As
circunstâncias podem obrigá-la a ceder, a se adaptar, com dor ou com
facilidade, a um padrão diferente; mas o centro continua rijo, e é esse centro
que causa a deterioração das mentes.
“O que o senhor chama de centro?”
Você não sabe? Está procurando uma
descrição dele?
“Não, senhor. Mas, pela descrição,
talvez eu possa tocá-lo, ter uma intuição dele.”
“Senhor”, interveio o pai, “talvez
estejamos intelectualmente consciente desse centro, mas, na verdade, a maioria
de nós nunca esteve frente a frente com o seu. Eu mesmo li descrições astutas e
sutis em vários livros, mas nunca o confrontei realmente; e quando você
pergunta se nós o conhecemos, eu posso dizer por mim que não. Conheço apenas as
descrições.”
“É de novo nosso interesse egotista”,
acrescentou o amigo, “nosso desejo arraigado de segurança, que nos impede de
conhecer esses centros. Não conheço meu próprio filho, apesar de ter vivido com
ele desde a infância, e conheço menos ainda aquilo que é muito mais próximo do
que meu filho. Para conhecê-lo é preciso olhar para ele, observá-lo, ouvi-lo,
mas nunca o faço. Estou sempre com pressa; e quando, ocasionalmente, o observo,
estou em conflito com ele.”
Estamos falando do envelhecimento, da
deterioração da mente. A mente está sempre construindo o padrão de sua própria
certeza, a segurança dos seus próprios interesses; as palavras, a forma, a
expressão pode variar de tempos em tempos, de cultura a cultura, mas o centro
de interesse egotista permanece. É esse centro que faz com que a mente se
deteriore, independente do quão alerta e ativa pareça externamente. Esse centro
não é um ponto fixo, mas vários pontos contidos na mente, e, portanto, é a
própria mente. A melhoria da mente, ou o deslocar-se de um centro a outro, não
elimina tais centros; disciplina, repressão ou sublimação de um centro só
estabelece outro em seu lugar.
Pois bem, a que nos referimos quando
dizemos que estamos vivos?
“Geralmente”, respondeu o filho, “nós
nos consideramos vivos quando falamos, quando rimos, quando há sensação, quando
há pensamento, atividade, conflito, alegria.”
Então, o que chamamos vida é aceitação
ou “revolta” no interior do padrão social, e um movimento dentro da jaula da
mente. Nossa vida é uma interminável série de dores e prazeres, medos e
frustrações, anseios e apegos; e quando, de fato, consideramos a deterioração
dela, e perguntamos se é possível pôr um fim nesse processo, nossa investigação
também ocorre dentro da jaula da mente. Isso é viver?
“Temo que não conheçamos outra vida”,
disse o pai. “À medida que envelhecemos, os prazeres se reduzem enquanto as
tristezas parecem aumentar; e se o indivíduo é minimamente reflexivo, está
ciente de que a mente se deteriora com o tempo. O corpo, inevitavelmente, fica
velho e conhece a decadência; mas como podemos impedir esse envelhecimento da
mente?”
Nós levamos uma vida impensada e, no
final, começamos a indagar por que a mente se deteriora e como deter o
processo. Certamente, o que importa é como viemos nossos dias, não apenas
quando jovens, mas também na meia-idade e durante os anos de declínio. O tipo
correto de vida exige de nós muito mais inteligência do que qualquer vocação
para ganhar o sustento. Pensar corretamente é fundamental para viver
corretamente.
“O que você quer dizer com pensar
corretamente?”, perguntou o amigo.
Há uma enorme diferença, sem dúvida,
entre pensar corretamente e o pensamento certo. Pensar corretamente é constante
percepção; o pensamento certo, por outro lado, é a conformidade a um padrão
fixado pela sociedade ou uma reação contra ela. O pensamento certo é estático,
é um processo de agrupar certos conceitos, denominados ideais, e segui-los. O
pensamento certo, inevitavelmente, constrói a perspectiva autoritária,
hierárquica, e engendra a tal respeitabilidade; ao passo que o pensar correto é
a percepção de todo o processo de conformidade, imitação, aceitação, revolta.
Pensar corretamente, ao contrário do pensamento certo, não é uma coisa a ser
alcançada; surge espontaneamente com autoconhecimento, que é a percepção dos
mecanismos do “eu”. Pensar corretamente não é algo que possa se aprendido em
livros ou com outra pessoa; ele ocorre por intermédio da mente que compreende a
si mesma na ação do relacionamento. Mas não pode haver entendimento dessa ação
enquanto a mente a justifica ou condena. Portanto, pensar corretamente elimina
o conflito e a autocontradição, que são as principais causas da deterioração da
mente.
“O conflito não é parte essencial da
vida?”, perguntou o filho. “Se não nos esforçássemos, apenas vegetaríamos.”
Achamos que estamos vivos quando nos
vemos apanhados no conflito da ambição, quando somos impelidos pela compulsão
da inveja, quando o desejo nos empurra à ação; mas tudo isso só leva a maior
sofrimento e confusão. O conflito aumenta a atividade autocentrada, ao passo
que a compreensão do conflito se dá por meio do pensar correto.
“Infelizmente, esse processo de luta e
sofrimento, com certa alegria, é a única vida que conhecemos”, disse o pai.
“Temos vislumbres de outro tipo de vida, mas são poucos e esparsos. Ultrapassar
essa bagunça e encontrar aquela outra vida é sempre o objeto de nossa busca.”
Buscar aquilo que está além do real é
estar preso em ilusão. A existência cotidiana, com suas ambições, invejas e
todo o restante, deve ser compreendida; mas compreendê-la exige percepção,
pensar corretamente. Não há pensar correto quando o pensamento começa com uma
suposição, um preconceito. Partir de uma conclusão ou buscar uma resposta
preconcebida põe fim ao pensar correto; assim não há pensar algum. Ou seja,
pensar corretamente é a base da virtude.
“Parece-me, colocou o filho, “que pelo
menos um dos fatores em todo esse problema da deterioração da mente é a questão
da ocupação certa.”
O que você chama de “ocupação certa?”
“Tenho notado, senhor, que aqueles que
se tornam inteiramente absorvidos em alguma atividade ou profissão logo se
desligam de si mesmos; ficam ocupados demais para pensar em si, o que é uma
coia boa.”
Mas tal absorção não é uma fuga de si
mesmo? Fugir de si mesmo é uma ocupação errada; é corruptora, gera inimizade,
divisão e todo o resto. A ocupação correta vem através do tipo correto de
educação e da compreensão de si mesmo. Você nunca reparou que, independentemente
da atividade ou profissão, o “eu” usa – consciente ou inconscientemente – como
meio para sua própria satisfação, para realizar sua ambição ou para obter
sucesso em termos de poder?
“Isso é assim, infelizmente. Parece que
usamos tudo o que tocamos para nossa própria promoção.”
É esse interesse egotista, essa constante
autopromoção, o que torna a mente mesquinha; e embora sua atividade seja vasta,
embora ela esteja ocupada com política, ciência, arte, pesquisa, etc., ocorre
um estreitamento do pensar, uma superficialidade que gera deterioração,
decadência. Somente quando há compreensão da totalidade da mente, do
inconsciente e da consciência, é que existe uma possibilidade de regeneração da
mente.
“O materialismo é a maldição da geração
moderna”, disse o pai. “Ela é arrastada pelas coisas do mundo, e não reflete
seriamente sobre temas sérios.”
Essa geração é como outras gerações.
Coisas materiais não são apenas geladeiras, camisas de seda, aviões, aparelhos
de televisão e tudo mais; elas incluem ideais, a busca do poder, seja
individual ou coletivo, e o desejo de estar seguro, seja neste mundo ou no
próximo. Tudo isso corrompe a mente e prova sua decadência. O problema da
deterioração deve ser compreendido no começo, na juventude, e não no período de
declínio físico.
“Isso quer dizer que não há esperança
para nós?”
De maneira alguma. É mais árduo
interromper a deterioração da mente na nossa idade, só isso. Para gerar uma
mudança radical em nossos modos de vida, deve haver percepção crescente, e uma
grande profundidade de sentimento que é o amor. Com amor, tudo é possível.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti.
Rio de Janeiro: Nova Era, 2012
Boa noite Roberto,
ResponderExcluirPenso que tudo que remete o ao ego predispõe a pessoa internar-se num casulo, mas essa crisálida não irrompe na bela borboleta, mas na sinistra mariposa, que prefere a escuridão a luz do dia. Compreendo que essa é a luz da qual abrimos mão quando aderimos ao condicionamento. A mente humana contém muitos mistérios, mas sou um otimista e como o tempo é inexorável, não há como fugir dele, prefiro então, ver a idade como um presente, o da a experiência, que tanta falta faz a junventude.
Sou avesso ao pragmatismo, me consolo na ciência, que tem descoberto alguns segredos sobre a demência, a esclerose e tantos outros problemas que nos afligem. Trabalho em um hospital, certa vez tive a oportunidade de conversar com um neurocirurgião, e como foi positiva sua conversa. Mas me alertou sobre uma coisa que todos nós já sabemos, que o amanhã nada mais é que a consequência do hoje. Então, como aconselha JK, comecemos a tratar a deterioração desde agora.
Abraços,
Luiz Otávio
É ISSO, caro compartilhador.
ExcluirAbração,
rjtl
Olá professor, estava procurando pelo livro "Da insatisfação à felicidade" e cheguei ao seu blog. Li a matéria a respeito e lá diz que resolveram disponibilizar o livro em PDF, só que o link já não consta mais como ativa para download. Gostaria de saber se tem como você disponibilizá-lo novamente ou enviar-me por email, pois já faz alguns meses que tenho interesse em comprar, mas como disseste no texto, o preço é extorsivo, encontrei com valores variados entre R$100 e R$300, é muito por um livro, mesmo sabendo que o conteúdo valha a pena. Fico aguardando contato.
ResponderExcluirMeu email: sjairpaulo@gmail.com
Ah, adorei seu blog, meus parabéns, depois de tanta tolice na internet, é bom encontrar um blog com conteúdo inteligente.
Jair Paulo Siqueira
Bons dias Jair!
ExcluirPenso que consegui recuperar o link, se não me informe, por favor. De qualquer modo, enviei o PDF para o seu email, beleza?
Abração,
rjtl
Bons dias, o link continua quebrado, mas agradeço muito por ter enviado ao meu email, vou imprimi-lo hoje mesmo para começar a estudar esta obra. Muito obrigado professor.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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