quarta-feira, 18 de julho de 2012

A felicidade criativa


Jiddu Krishnamurti (*)

 EXISTE UMA CIDADE às margens do majestoso rio. Amplos e longos degraus levam até a beira d´água e o mundo todo parece viver neles. Desde cedo pela manhã até bem depois de escurecer eles estão sempre fervilhando com pessoas e ruídos; quase no mesmo nível da água, existem pequenos degraus protuberantes nos quais as pessoas sentam-se e se perdem em suas esperanças e anseios, em seus deuses e cânticos. Os sinos do templo tocam, o muezim chama; alguém canta e uma enorme massa de pessoas reúne-se, ouvindo em silêncio respeitoso.

Além disso tudo, depois da curva e subindo o rio, há um amontoado de edifícios. Com suas avenidas arborizadas e amplas ruas, eles se estendem por vários quilômetros para o interior; e, ao longo do rio, por uma alameda estreita e suja, a pessoa entra nesse vasto campo de aprendizagem. Muitos alunos de todas as partes do país estão lá, ansiosos, ativos e barulhentos. Os professores são imponentes, tramando por melhores cargos e salários. Ninguém parece estar muito preocupado com o que acontecerá com os alunos quando eles forem embora. Os professores transmitem certos conhecimentos e técnicas que os mais inteligentes rapidamente absorvem; e, quando eles se formam, isso é tudo. Eles têm empregos garantidos, têm famílias e segurança; mas, quando os alunos vão embora, precisam enfrentar a agitação e a insegurança da vida. Existem esses edifícios, esses professores e alunos por toda parte. Alguns alunos alcançam fama e reconhecimento no mundo; outros respiram, lutam e morrem. O Estado quer técnicos competentes, administradores para guiarem e controlarem; e ainda há o Exército, a Igreja e os negócios. No mundo inteiro, é igual.

É para aprender uma técnica e ter um emprego, uma profissão, que passamos por esse processo de ter a mente superficial recheada de fatos e conhecimentos, não é? Obviamente, no mundo moderno, um bom técnico tem mais chance de ganhar a vida; mas e daí? Alguém que seja um técnico está mais capacitada a enfrentar o complexo problema de viver do que um que não o seja? Uma profissão é apenas uma parte da vida; mais existem também aquelas partes que são ocultas, sutis e misteriosas. Enfatizar uma e negar ou negligenciar o restante deverá levar inevitavelmente a atividades muito desequilibras e desintegradoras. É isso precisamente o que está acontecendo no mundo atual, com o aumento constante de conflitos, confusões e infelicidade. Claro que existem algumas exceções: os criativos, os felizes, aqueles que estão em contato com algo que não é criado pelo homem, que não dependem daquilo que pertence à mente.

Você e eu temos intrinsecamente a capacidade de sermos felizes, criativos, de estarmos em contato com algo que transcenda as garras do tempo. A felicidade criativa não é uma dádiva reservada a poucos; por que, então, a maioria não conhece essa felicidade? Por que alguns parecem manter contato com o que é profundo apesar das circunstâncias e dos acasos, ao passo que outros são destruídos por eles? Por que alguns se mostram resistentes, maleáveis, enquanto outros permanecem inflexíveis e são destruídos? Apesar do conhecimento, alguns mantêm a porta aberta para aquilo que nenhuma pessoa e nenhum livro pode oferecer, enquanto outros são sufocados pela técnica e pela autoridade. Por quê? Está relativamente claro que a mente deseja ficar presa e garantida em algum tipo de atividade, negligenciando assuntos mais profundos e amplos, pois desse modo, estará em terreno mais seguro; então, sua educação seus exercícios e suas atividades serão estimulados e sustentados nesse nível e desculpas serão encontradas para que não avancem além disso.

Antes de serem contaminadas pela suposta educação, muitas crianças estão em contato com o desconhecido; elas demonstram isso de muitas maneiras. Mas logo o ambiente começa a fechar-se em torno delas e, depois de certa idade, elas perdem aquela luz, aquela beleza que não é encontrada em livros ou escolas. Por quê? Não diga que a vida é demais para elas, que elas têm de enfrentar a dura realidade, que é o carma delas, que é o pecado dos pais delas; tudo isso é bobagem. A felicidade criativa não tem valor no mercado; não é uma mercadoria para ser vendida pelo melhor preço e é a única coisa que pode existir para todos.

A felicidade criativa é concretizável? Ou seja, a mente pode estar em contato com aquilo que é a fonte de toda a felicidade? Essa abertura pode ser mantida apesar do conhecimento e da técnica, apesar da educação e da afobação da vida? Ela pode, mas apenas quando o educador é preparado para essa realidade, somente quando aquele que ensina está, ele mesmo, em contato com a fonte da felicidade criativa. Então nosso problema não é o aluno, a criança, mas o professor e o pai. A educação só é um circulo vicioso quando não percebemos a importância, a necessidade essencial acima de tudo mais, dessa suprema felicidade. Afinal, estar aberto à fonte de toda a felicidade é a religião superior; mas, para concretizar essa felicidade, você precisa dar a atenção correta a ela, como dá aos negócios. A profissão de professor não é um simples trabalho rotineiro, mas a expressão da beleza e da alegria, que não pode ser medida em termos de realizações e sucesso.

A luz da realidade e sua bem-aventurança são destruídas quando a mente, que é o centro do ser, assume o controle. O autoconhecimento é o início da sabedoria; sem autoconhecimento o aprendizado conduz a ignorância, discórdia e tristeza.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2009


2 comentários:

  1. Mas uma vez o tortuoso caminho a ser vencido. Procuro entender as observações de JK, mas como, no meu blog coloquei o princípio da dualidade e da contradição, que se resume nos paradoxos da vida. Mas JK extrapola tudo isso, vai mais além, suas concepções sobre a criatura humana são por demais abrangentes.
    "A luz da realidade e sua bem-aventurança são destruídas quando a mente, que é o centro do ser, assume o controle."
    Contraria vários pensadores, esse conceito é difícil de ser assimilado, necessita muita reflexão. Já conseguir conceber alguma coisa sobre esta frase?

    Abraços,

    Luiz Otávio

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    1. Luiz, boas noites!

      Quanto à questão que você coloca tenho dificuldade de respondê-la objetivamente. Isso se deve, até mesmo, a minha compreensão do conceito que você faz menção. Ou seja, nos conceitos que exigem maior profundidade em minhas reflexões, procuro deixá-los operar com a menor participação possível da mente. Quando assim consigo proceder, paradoxalmente, mesmo sem conseguir formular uma explicação clara do meu entendimento sobre determinado conceito, sinto-o fazendo parte das minhas ações.

      Do que eu tenho lido das manifestações do JK, ele refuta, insistentemente, a possibilidade de manifestar alguma conclusão, algum "como", às questões que lhe são formuladas. Assim, eu sempre o leio sem esperar um modo, uma maneira, de obter das suas manifestações uma conclusão. Ele sempre procurar te conduzir a que você mesmo encontre a resposta para a questão que você formulou. Eu sei que parece complicado seguir as manifestações do JK. Se por um lado ele não responde diretamente nossos questionamentos, por outro ele nós conduz a pensar por nós mesmo e isso me deixa em um estado de contentamento. Como diz o bordão “Durma-se com uma bronca dessa”.

      Um abração,

      Roberto Lira

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