Jiddu Krishnamurti (*)
ERA UM PASSEIO ENCANTADOR. A trilha da casa atravessava o vinhedo,
e as uvas apenas começavam a amadurecer; eram abundantes e suculentas e produziriam
grande quantidade de vinho tinto. O vinhedo era bem cuidado e não havia qualquer
erva daninha. Ao seu lado, estava a cuidadíssima plantação de tabaco, longa e
ampla. Após a chuva, das plantas começavam a brotar flores rosadas, perfeitas e
limpas; seu aroma frágil de tabaco fresco, tão diferente do cheiro nauseante do
tabaco queimado, tornar-se-ia mais intenso sob o sol forte. Os longos talos em
que cresciam as flores logo seriam cortados para fazer com que as pálidas
folhas verde-prateadas, já bastante grandes, estivessem ainda maiores e mais
abundantes na época da colheita. Depois, elas seriam reunidas, classificadas,
atadas com longas cordas e penduradas no comprido armazém atrás da casa, para
secar de modo uniforme, onde o sol as tocaria, e haveria brisa noturna. Naquele
instante, homens já trabalhavam com bois na plantação de tabaco, abrindo sulcos
entre as longas e eretas plantas enfileiradas para matar ervas daninhas. O solo
fora cuidadosamente preparado e pesadamente adubado, e ervas daninhas haviam
crescido nele de modo tão abundante quanto os pés de tabaco; mas, após todas
essas semanas, não havia uma única erva daninha à vista.
A trilha avançava por um pomar de pés
de pêssegos, peras, ameixas vermelhas e amarelas, nectarinas e outras árvores,
todas carregadas de frutas maduras. Ao entardecer, havia um doce aroma no ar, e
durante o dia, o zumbido de muitas abelhas. Além do pomar, a trilha descia uma
longa encosta, aprofundando-se em bosques densos e acolhedores. Aqui a terra era
macia sob os pés, coberta de folhas mortas de muitos verões. Ficava muito
fresco sob as árvores, pois o sol tinha pouca chance de penetrar a espessa
folhagem; o solo estava sempre úmido e perfumado, emanando o aroma do rico húmus.
Havia muitos cogumelos, a maioria de espécies não comestíveis. Aqui e ali era
possível encontrar tipos comestíveis, mas será necessário procurar bem; eles
ficavam mais recolhidos, em geral escondidos sob uma folha da mesma cor. Os
camponeses chegavam cedo para levá-los para o mercado ou pra o próprio consumo.
Quase não havia pássaros naqueles
bosques, que se estendia por milhas sobre as colinas suavemente onduladas. Era
muito silencioso; nem mesmo uma leve brisa agitava as folhas. Mas algum
movimento sempre estava acontecendo naquela mata, como parte do imenso silêncio;
não era perturbador, e parecia aumentar a tranquilidade da mente. As árvores,
os insetos, as enormes samambaias não eram separadas, como algo visto de fora; eram
parte daquela quietude, interna e externamente. Até o ruído abafado de um trem
distante estava contido nessa paz. Havia completa ausência de resistência, e os
latidos de um cão, insistentes e penetrantes, pareciam aumentar o sossego.
Além do bosque, ficava o rio, sinuoso e
adorável. Não era muito largo ou impressionante, mas amplo na medida justa para
permitir que olhos aguçados avistassem as pessoas na margem oposta. Ao longo de
ambas as margens, havia árvores, principalmente choupos, altos e majestosos,
com as folhas tremulando na brisa. A água era profunda e fresca, sempre
fluindo. Era algo belo de se contemplar, cheio de vida e abundância. Havia um
pescador solitário sentado num banquinho, com uma cesta de piquenique a seu
lado e um jornal sobre os joelhos. O rio trazia contentamento e paz, ainda que
os peixes parecessem evitar a isca. O rio sempre estaria lá, mesmo que guerras
acontecessem e homens morressem; ele sempre estaria nutrindo a terra e as
pessoas. Ao longe, assomavam as montanhas nevadas e, num entardecer
desanuviado, quando o sol poente as tocava, seus picos altos eram vistos como
nuvens iluminadas pelo sol.
Éramos três ou quatro na sala, e logo
além da janela havia um gramado amplo e resplandecente. O céu era de um azul
pálido, com grande e movimentadas nuvens.
“Será realmente possível”, indagou o
homem, “que a mente se livre de seu condicionamento? Se for, qual é o estado de
uma mente que se descondicionou? Ouvi suas palestras durante vários anos, e
dediquei muita reflexão ao assunto, mas minha mente não parece capaz de romper
com as tradições e ideias que foram implantadas na infância. Sei que sou tão
condicionado quanto qualquer outra pessoa. Desde a infância, somos ensinados a
nos conformar – brutalmente, ou com carinho e sugestões gentis – até que a
conformidade se torna instintiva, e a mente teme a insegurança de não se conformar.
“Tenho uma amiga que cresceu em
ambiente católico”, continuou ele, “e, naturalmente, ela ouviu falar sobre o
pecado, o fogo do inferno, as alegrias confortadores do céu e tudo mais. Ao
chegar à maturidade, e depois de muito pensar, ela abandonou a estrutura
católica de pensamento; mas, mesmo agora, na vida adulta, ela se vê influenciada
pela ideia do inferno, com seus pavores contagiantes. Embora minha formação
seja um tanto diferente na superfície, tal como ela, também tenho medo de não
me conformar. Vejo o absurdo do conformismo, mas não consigo me livrar dele; e,
mesmo que pudesse, provavelmente estaria fazendo o mesmo de outra forma –
simplesmente me conformando a um no novo molde.”
“Essa também é minha dificuldade”,
disse uma das senhoras. “Vejo com bastante clareza as muitas maneiras pelas
quais estou presa à tradição; mas será que posso me livrar de meu presente cativeiro
sem recair em outro? Há pessoas que passam de uma organização religiosa a
outra, sempre buscando, nunca satisfeitas; e quando finalmente, ficam satisfeitas,
tornam-se terrivelmente chatas. Provavelmente, é o que acontecerá comigo se eu
tentar romper com meu presente condicionamento: sem perceber, serei arrastada
par outro padrão de vida.”
“Na verdade”, continuou o homem, “a
maioria de nós nunca pensou profundamente sobre como a mente é quase
completamente moldada pela sociedade e pela cultura em que crescemos. Não nos
damos conta de nosso condicionamento, e simplesmente prosseguimos, lutando,
buscando, ou sendo frustrados nos moldes de determinada sociedade. Esse é o
destino de quase todos nós, incluindo políticos e lideres religiosos.
Infelizmente para mim, talvez, compareci a muitas de suas palestras, e logo começou
a dor do questionamento. Durante algum tempo, não pensei no assunto com
profundidade, mas, de repente, vi que me tornava sério. Andei experimentando, e
agora estou consciente de muitas coisas em mim que jamais havia notado. Se eu
puder continuar sem os que os presentes sintam que estou tagarelando demais,
gostaria de me aprofundar um pouco mais na questão do condicionamento.”
Quando os outros lhe garantiram que
também estavam profundamente interessados nesse tema, ele prosseguiu.
“Após ouvir ou ler a maioria das coisas
que você disse, percebi o quanto sou condicionado; e, da mesma maneira, vi que
um indivíduo deve livrar-se do condicionamento – não apenas do condicionamento
da mente superficial, mas também do inconsciente. Percebi a absoluta necessidade
disso. Mas o que realmente está ocorrendo é o seguinte: o condicionamento que
recebi em minha juventude continua, e, ao mesmo tempo, há um forte desejo de me
descondicionar. Assim, minha mente está presa nesse conflito entre o condicionamento
que percebo e a ânsia por me livrar dele. Essa é minha situação atual. Como
devo proceder agora?”
O anseio da mente por se libertar do
condicionamento põe em marcha outro padrão de resistência e condicionamento, não? Ao se tornar consciente do padrão ou molde em
que cresceu, você deseja libertar-se dele; mas esse desejo de liberdade não
condicionará a mente mais uma vez, de maneira diferente? O antigo padrão
insiste que se conforme à autoridade, e, agora você está desenvolvendo uma nova
autoridade, que insiste que você não deve
se conformar; assim, você tem dois padrões em conflito entre si. Enquanto houver
essa contradição interna, mais condicionamentos ocorrerão.
“Sei que o antigo padrão é completamente
absurdo e morto, e que preciso libertar-me dele; caso contrário, minha mente
continuará da mesma maneira estúpida.”
Sejamos pacientes e nos aprofundemos na
questão. A velha regra lhe dizia para se conformar, e por diversas razões –
medo da insegurança, entre outras, – você se adaptou. Pois bem, por razões de um
tipo distinto, mas nas quais ainda há medo e desejo de segurança, você sente que não deve se conformar. É isso que ocorre,
não?
“Sim, mas ou menos. Mas o antigo é
estúpido, e eu tenho de me livrar da estupidez.”
Permita-me destacar que você não está
ouvindo. Segue insistindo que o antigo é mau, e que você precisa do novo. Mas
alcançar o novo não é o problema, em absoluto.
“Esse é meu problema, senhor.”
Será? Você acredita nisso, mas vejamos.
Por favor, não prossiga com seus pensamentos sobre o problema, apenas ouça,
pode ser?
“Vou tentar.”
Uma pessoa se conforma instintivamente
por várias razões: por apego, medo, desejo de recompensa e assim por diante.
Essa é a primeira reação de um indivíduo. Porém, chega alguém e diz que o
indivíduo deve se livrar do condicionamento, e daí surge o anseio por não se conformar. Está entendendo?
“Sim, senhor, isso está claro.”
Pois bem, há alguma diferença essencial
entre o desejo de se conformar e o anseio por libertar-se da conformidade?
“Parece que deveria haver, mas
realmente não sei. O que me diz, senhor?”
Não cabe a mim dizer, nem a você
aceitar. Será que você não tem de descobrir por si mesmo se existe alguma
diferença fundamental entre esses dois desejos aparentemente opostos?
“Como posso descobrir?”
Ao não condenar o primeiro nem buscar
ansiosamente o segundo. Qual é o estado da mente que anseia por se livrar da
conformidade, e que a rejeita? Por favor, não me responda, apenas sinta,
realmente vivencie esse estado. As palavras são necessárias para a comunicação,
mas não são a experiência real. A menos que você realmente vivencie e compreenda
esse estado, seus esforços por se libertar só provocarão a formação de outros
padrões. Não é assim?
“Não compreendo muito bem.”
Certamente, não dar fim completo ao
mecanismo que produz padrões, moldes, sejam eles positivos ou negativos,
implica continuar num padrão ou condicionamento modificado.
“Eu compreendo isso verbalmente, mas
não o sinto de fato.”
Para um homem faminto, a mera descrição
da comida não tem valor; ele deseja comer.
Há o anseio que forma a conformidade e
o anseio por ser livre. Independente do quão diferentes pareçam dois anseios,
não são fundamentalmente semelhantes? E, se assim são, então sua busca por liberdade
é vã, pois você apenas se deslocará de um padrão a outro, incessantemente. Não
há qualquer condicionamento nobre, ou melhor, todo condicionamento é dor. O desejo
de ser, ou de não ser, gera condicionamento, e é esse desejo que deve ser
compreendido.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver.
Breves textos – Volume 3 / Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012.
Bom dia de novo, Roberto,
ResponderExcluirExcelente texto. JK o encerrar brilhantemente com a comparação dos "anseio", me questionei muito durante a leitura deste, e sinceramente, penso que consegui superar esta fase. Tenho refletido muito, sobre muitas coisas, curiosamente mais que anteriormente, talvez por influência do blog, que me impele a pensar como costurar meus rascunhos. Tenho conseguido, não sei como ainda, perceber a perniciosidade do conformismo, esse conformismo que nos trai sem nos darmos conta dele, analogamente às crenças, considerando que quando estabelecemos um molde, um padrão de conduta, nos conformamos com ele, ou seja, nos tornamos crentes de si mesmo, para regras que nos impusemos sem perceber, sem a atuação da consciência livre.
Esses movimentos mentais sutis, são de fato muito difíceis de serem notados, tenho conseguido, com sua ajuda, e lhe sou grato por isso, percebê-los.
Agradeço por postar esses textos meu caro Roberto, tem me permitido leituras prazerosas, em momentos como este, agora, onde pode relaxar um pouco.
Grande abraço,
Luiz Otávio