Jiddu Krishnamurti (*)
SENTADO NUMA PLATAFORMA ELEVADA ele
tocava um instrumento de sete cordas para uma pequena plateia familiar com um
tipo de música clássica. Estavam sentados no chão diante dele; de uma posição
às suas costas era tocado outro instrumento de apenas quatro cordas. Era
um homem jovem, mas mestre total das sete cordas e da complexa música. Ele
improvisava antes de cada canção; depois vinha a composição, sobre a qual
haveria mais improviso. Jamais ouviríamos alguma daquelas músicas executada
duas vezes da mesma maneira. As letras eram fixas, mas dentro de determinada
composição havia grande latitude, e o artista podia improvisar segundo o seu
coração; e quanto mais variações e combinações, maior o músico. Nas cordas, palavras
não eram possíveis; mas todos que lá estavam conheciam as letras e se
extasiavam com elas. Com cabeças meneando e mãos gesticulando com graça, eles
seguiam o ritmo perfeitamente e o marcava com uma leve palmada na perna. O
músico fechara os olhos e se achava completamente absorto em sua liberdade
criativa, e na beleza do som; sua mente e seus dedos estavam em perfeita coordenação.
E que dedos! Delicados e rápidos, pareciam ter vida própria. Só se tornavam
quietos e relaxados ao fim da música, numa nota particular; mas, com incrível
rapidez, logo começavam uma nova melodia, em tonalidade distinta. Quase nos
hipnotizavam com sua graça e ligeireza de movimento. E a cordas, que sons
lindos emitiam! Eram pressionadas pelos dedos da mão esquerda na tensão
apropriada, ao passo que a mão direita as dedilhava com facilidade e controle
magistral.
A lua era clara do lado de fora, e as
sombras escuras estavam imóveis; o rio se via logo após a janela, um fluxo de
prata em contraste com as árvores escuras e silenciosas da outra margem. Uma
coisa estranha acontecia no espaço que é a mente. Ela vinha observando os
movimentos graciosos dos dedos, ouvindo os doces sons, observado as cabeças que
se moviam suavemente e as mãos rítmicas da plateia silenciosa. Subitamente, o
observador, o escutador, desapareceu; ele não fora induzido à suspensão pelas
melódicas cordas, mas estava totalmente ausente. Havia apenas o vasto espaço que
é a mente. Todas as coisas da Terra e do homem estavam nela, mas se encontravam
em seus limites exteriores, fracas e remotas. Dentro do espaço no qual nada
havia, existia um movimento, e o movimento era a quietude. Era um movimento
profundo e vasto, sem direção, sem motivo, que começava nos limites externos e
avançava com incrível força ao centro – um centro que se encontra em toda parte
no interior da quietude, no interior do movimento que é o espaço. Esse centro é
total solicitude, incontaminada, incognoscível, uma solidão que não é
isolamento, que não tem fim nem começo. É completa em si mesma, não é inventada;
os limites externos estão nela, mas não lhe pertencem. Ela está lá, mas não no
interior do escopo da mente humana. É o todo, a totalidade, mas não é
abordável.
Havia quatro deles, todos rapazes que
tinha aproximadamente a mesma idade, entre 16 e 18 anos. Bastante tímidos, eles
precisam de persuasão, mas, uma vez que começaram, mal podiam parar, e suas
perguntas ansiosas saiam aos borbotões. Dava para notar que eles haviam
conversado sobre tais assuntos entre si com antecedência e prepararam perguntas
por escrito; mas, após a primeira ou segunda, esqueceram o que haviam redigido,
e suas palavras fluíam livremente dos próprios e espontâneos pensamentos.
Embora não fossem filhos de pais abastados, eram imaculados e asseados em seu
vestir.
“Quando conversou com os estudantes, há
dois ou três dias”, começou o mais próximo, “o senhor disse algo sobre como a
educação correta é necessária para que sejamos capazes de encarar a vida.
Debatemos esse tema entre nós, mas não compreendemos muito bem.”
Que tipo de educação vocês têm agora?
“Ah, estamos na faculdade, e aprendemos
as coisas habituais que são necessárias para determinada profissão”, ele
respondeu. “Eu serei engenheiro; meus amigos aqui estudam física, literatura e
economia, respectivamente. Estamos cursando o plano de estudos prescrito e
lendo os livros indicados, e quando temos tempo, lemos um ou outro romance; mas
afora os esportes, estudamos a maior parte do tempo.”
Vocês acham que isso é suficiente para
terem boa educação para a vida?
“Pelo que o senhor disse, não”,
replicou o segundo. “Mas isso é tudo que temos, e achamos que, de modo geral,
estamos sendo educados de modo geral.”
Aprender a ler e escrever apenas,
cultivar a memória e passar em algumas provas, adquirir certas capacidade ou
habilidades para conseguir um emprego – isso é educação?
“Mas isso não é necessário?”
Sim, preparar-se para ter um meio
correto de ganhar o sustento é essencial; mas não é o todo da vida. Há também o
sexo, a ambição, a inveja, o patriotismo, a violência e muitas outras coisas.
Vocês estão sendo educados para encarar essa vasta coisa chamada vida?
“Quem pode nos educar?” perguntou o
terceiro. “Nossos mestres e professores parecem indiferentes. Alguns são
inteligentes e cultos, mas nenhum dedica qualquer pensamento a esse tipo de
coisa. Somos empurrados para a frente, e teremos sorte se conseguirmos obter
nossos diplomas; tudo está se tornando bem difícil.”
“Exceto por nossos impulsos sexuais,
que são bastante definidos”, disse o primeiro, “não sabemos nada da vida; todo
o resto parece vago e remoto. Ouvimos nossos pais reclamando de falta de
dinheiro, e percebemos que eles estão presos em certas rotinas pelo resto de
seus dias. Assim, quem pode nos ensinar sobre a vida?”
Ninguém pode lhes ensinar, mas vocês
podem aprender. Há uma vasta diferença entre aprender e ser ensinado. Aprender
acontece ao longo da vida, ao passo que ser ensinado acaba dentro de algumas
horas ou anos – e depois, pelo resto de sua vida, vocês repetirão aquilo que
lhes foi ensinado, que logo se torna cinzas mortas; e assim a vida, que é algo
vivo, torna-se um campo de batalha de esforços vãos. Vocês são atirados na vida
sem tranquilidade ou oportunidade para compreendê-la; antes que saibam qualquer
coisa sobre a vida, já estão bem no meio dela, casados, amarrados a um emprego,
com a sociedade implacavelmente esbravejando a seu redor. Deve-se aprender
sobre a vida desde a mais tenra infância, e não no último instante; quando já
estão chegando à idade adulta, é quase tarde demais.
Vocês sabem o que é a vida? Ela se
estende do momento em que nascem ao momento em que morrem, e talvez além. A vida é
um todo vasto e complexo; é como uma casa em que tudo esta acontecendo a um só
tempo. Vocês amam e odeiam; são cobiçosos, invejosos e, ao mesmo tempo, sentem
que não deveriam ser. São ambiciosos, e há frustração ou sucesso, seguindo o
rastro da angústia, do medo e da crueldade; e, cedo ou tarde, chaga o
sentimento da futilidade de tudo isso. E há os horrores e a brutalidade da
guerra, e a paz pelo terror; há o nacionalismo e a soberania, que apoiam a
guerra; há a morte ao fim da estrada da vida, ou em algum ponto no meio dela.
Há a busca por Deus, com suas crenças em conflito e as disputas entre religiões
organizadas. Há o esforço para conseguir e manter um emprego; há casamento,
filhos, doença e o jugo da sociedade e do Estado. A vida é tudo isso, e muito
mais; e vocês são atirados nessa bagunça. Em geral, afundam nela, infelizes e
perdidos; e se vocês sobrevivem subindo até o alto da escala, ainda são parte
da bagunça. Isso é o que chamamos vida; perpétuo esforço e dor, com um pouco de
alegria ocasional. Quem lhes ensinará tudo isso? Ou melhor, como vocês
aprenderão sobre ela? Mesmo que tenham capacidade e talento, são atormentados
por ambição, pelo desejo de fama, com suas frustrações e infelicidades. Tudo
isso é vida, não é assim? E ultrapassar tudo isso também é vida.
“Felizmente, ainda sabemos pouquíssimo sobre
toda essa luta”, prosseguiu o primeiro, “mas o que o senhor menciona já está
potencialmente em nós. Eu quero ser um engenheiro famoso, quero vencer todos os
outros; portanto, tenho de trabalhar duro e conhecer as pessoas certas; preciso
planejar, calcular o futuro. Devo abrir meu caminho na vida.”
Aí está. Todos dizem que devem abrir
seu caminho pela vida; cada um por si, seja em nome dos negócios, da religião
ou do país. Você quer ser famoso, e o mesmo quer o seu vizinho, e o mesmo quer
o vizinho dele; e é assim com todos,
desde o mais alto ao mais baixo na Terra. Assim, construímos uma sociedade
baseada em ambição, inveja e aquisição, em que cada homem é inimigo do outro; e
vocês são “educados” para se conformar a essa sociedade em desintegração, para
se encaixar em sua estrutura perversa.
“Mas o que podemos fazer?” perguntou o
segundo. “Acho que devemos nos conformar à sociedade ou ser destruídos. Existe
alguma saída para isso, senhor?”
No presente, vocês são supostamente
educados para se encaixar nessa sociedade; suas capacidades são desenvolvidas
para ganhar o sustento dentro desse padrão. Seus pais, os educadores, o
governo, todos estão preocupados com sua eficiência e segurança financeira, não
estão?
“Não sei do governo, senhor”, comentou
o quarto, “mas nossos pais gastam o dinheiro arduamente ganho para permitir que
tenhamos um diploma universitário, para que possamos obter uma forma de
sustento. Eles nos amam.”
Amam mesmo? Vejamos. O governo deseja
que vocês sejam eficientes burocratas para dirigir o Estado, bons trabalhadores
industriais para manter a economia e soldados capazes de matar “o inimigo”. Não
é assim?
“Suponho que o governo queira isso. Mas
nossos pais são mais bondosos; eles pensam em nosso bem-estar e querem que
sejamos bons cidadãos.”
Sim, eles querem que vocês sejam “bons
cidadãos”, o que significa ser respeitavelmente ambicioso, perpetuamente
acumulador e participante da crueldade socialmente aceita que se chama
competição, para que eles possam estar seguros. Isso é o que constitui o assim
chamado bom cidadão; mas será de fato bom, ou algo muito maléfico? Vocês dizem que seus pais os amam; mas será
mesmo? Não estou sendo cínico. O amor é uma coisa extraordinária; sem ele a
vida é estéril. Vocês podem ter muitas posses e ocupar o trono do poder, mas,
sem a beleza e a grandeza do amor, a vida logo se torna infelicidade e
confusão. Amor indicaria que aqueles que são amados recebem total liberdade
para crescer em sua plenitude, para ser algo maior do que meras máquinas
sociais, não é? O amor não obriga, nem abertamente nem por ameaças sutis de
deveres e responsabilidades. Onde há qualquer forma de coerção ou uso de
autoridade, não há amor.
“Não acho que este seja o tipo exato de
amor de que meu amigo estava falando”, disse o terceiro. “Nossos pais nos amam,
mas não dessa maneira. Conheço um garoto que quer ser artista, mas o pai quer
que ele seja um homem de negócios e ameaça abandoná-lo se o filho não cumprir
esse dever.”
O que os pais chamam de dever não é
amor, é uma forma de coerção; e a sociedade apoiará os pais, pois o que eles
estão fazendo é muito respeitável. Os pais estão ansiosos para que o menino
encontre um emprego seguro e ganhe algum dinheiro; mas, com uma população tão
enorme, há mil candidatos para cada emprego, e os pais acham que o menino jamais
ganharia seu sustento com arte; portanto tentam forçá-lo a abandonar o que veem
como um capricho tolo. Consideram uma necessidade que ele se conforme à sociedade,
que seja respeitável e seguro. Isso é o chamam de amor. Mas será? Ou é medo,
coberto pela palavra “amor”?
“Quando você coloca dessa maneira, não
sei o que dizer”, replicou o terceiro.
Existe alguma outra maneira de colocar?
O que acabou de ser dito pode ser desagradável, mas é um fato. A chamada
educação que vocês têm agora, obviamente, não os ajuda a encarar esse vasto
complexo da vida; vocês chegam despreparados e são engolidos por ele.
“Mas quem pode nos educar para
compreender a vida? Não temos tais mestres, senhor.”
O educador também deve ser educado. Os
mais velhos dizem que vocês, a próxima geração, devem criar um mundo diferente,
mas eles não acreditam nisso, de modo algum. Pelo contrário, com muito pensamento
e cuidado, eles se dedicam a “educá-los” a se conformarem ao velho padrão, com
alguma modificação. Embora digam coisas muito diferentes, os professores e
pais, apoiados pelo governo e pela sociedade em geral, garantem que vocês sejam
treinados de modo que se conformem à tradição e aceitem a ambição e a inveja
como o modo natural de vida. Não estão minimamente preocupados com um novo modo
de vida, e é por isso que o próprio educador não está sendo corretamente
educado. A geração mais velha criou esse mundo de guerra, este mundo de
antagonismo e divisão entre homem e homem, e a nova geração segue aplicadamente
em seus passos.
“Mas nós queremos ser educados
corretamente, senhor. O que podemos fazer?”
Antes de tudo vejam, claramente um fato
simples: que nem o governo, nem seus presentes professores, nem seus pais se
interessam por educá-los corretamente; se fosse o caso, o mundo seria
completamente diferente, não haveria guerra. Assim, se vocês querem ser
corretamente educados, terão de fazê-los sozinhos; e quando forem adultos, vocês
se certificarão de que seus próprios filhos sejam corretamente educados.
“Mas como podemos nos educar
corretamente? Precisamos de alguém para nos ensinar.”
Vocês têm professores para instruí-los
em matemática, literatura e outras coisas, mas a educação é algo mais profundo
e amplo que o mero acúmulo de informações. Educação é o cultivo da mente de modo
que a ação não seja autocentrada; é aprender ao longo da vida a derrubar as
paredes que a mente constrói para estar segura, e de onde surge o medo com
todas as suas complexidades. Para serem corretamente educados, vocês têm de
estudar muito e não ter preguiça. Sejam bons em jogos, não para vencer o outro,
mas para se divertir. Comam a comida certa, e mantenham-se fisicamente saudáveis.
Deixem que sua mente esteja alerta e capaz de lidar com os problemas da vida, não
como hindu, comunista ou cristão, mas como ser humano. Para serem corretamente
educados, vocês devem compreender a si mesmos; têm de seguir aprendendo sobre
si mesmo. Quando param de aprender, a vida se torna feia e infeliz. Sem bondade
e amor não somos corretamente educados.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti.
Rio de Janeiro: Nova Era, 2012
Boa tarde Roberto,
ResponderExcluir"Vocês sabem o que é a vida? Ela se estende do momento em que nascem ao momento em que morrem, e talvez além." Interessante esta frase de JK, a manifestação da "vida além vida". Tinha observado isto?
"Para serem corretamente educados, vocês devem compreender a si mesmos; têm de seguir aprendendo sobre si mesmo.Quando param de aprender, a vida se torna feia e infeliz."
Essa frase resumi tudo, não tenha a crença que possamos ser tutores de si mesmo desde o nascimento, mas depois que aprendemos a "andar", devemos fazê-lo sozinho, ou nossos pais viverão para sempre para segurar nossas mãos? Felizmente não. A lei de evolução nos condiciona a isto. E como dizem, a prática leva a perfeição, ao mesmo tempo que aumento meus estudo, vou percebendo, exatamente o contrário, o quanto ainda tenho por aprender. Compreender o tamanho de nossa pequenez, é algo interessante, isto não tem nenhuma conotação religiosa, me refiro a dimensão do por vir, onde a vida se apresenta e manifesta clara para os observadores atentos, como alerta JK. Conto contigo para que continuemos a educar-nos.
Grande abraço
Luiz Otávio
Roberto,
ResponderExcluirLeia "...não tenho a crença..." no terceiro parágrafo.
Abraço,
Luiz Otávio
Boas tardes, Luiz!
ResponderExcluirQuanto à manifestação de JK que nos leva a falar da "vida além vida", sim, já tinha observado. E vou me atrever a fazer o seguinte comentário: Nas leituras que faço de suas palestras e/ou comentários sobre o viver, observo que ele sempre arrefece esse assunto quando ele é mencionado – essa é minha observação. Agora, quanto ao por que dessa conduta? Compreendo, ou melhor, imagino que ele procura sempre nos situar no aqui e agora. Desse modo, não alimenta nossa imaginação e nosso já exacerbado condicionamento com aquilo não faz parte da realidade a ser vivida, enquanto estamos vivos. Nunca observei ele se referindo, ou se preocupando, em nos fazer compreender a(s) vida(s) futura(s). Essa minha observação/compreensão é para o momento.
Abração,
rjtl
Boa noite Roberto,
ResponderExcluirConsinto, de fato a preocupação procede, principalmente se considerarmos uma platéia heterogênea ansiosa por respostas para suas angústias. Quanto a mim, por enquanto, vou-me preocupar com o agora e repetindo um dito popular, cito: "o futuro a Deus pertence", embora seja uma consequência direta do presente.
Um abraço,
Luiz Otávio