sexta-feira, 27 de julho de 2012

Sem bondade e amor, não somos educados


Jiddu Krishnamurti (*)



SENTADO NUMA PLATAFORMA ELEVADA ele tocava um instrumento de sete cordas para uma pequena plateia familiar com um tipo de música clássica. Estavam sentados no chão diante dele; de uma posição às suas costas era tocado outro instrumento de apenas quatro cordas. Era um homem jovem, mas mestre total das sete cordas e da complexa música. Ele improvisava antes de cada canção; depois vinha a composição, sobre a qual haveria mais improviso. Jamais ouviríamos alguma daquelas músicas executada duas vezes da mesma maneira. As letras eram fixas, mas dentro de determinada composição havia grande latitude, e o artista podia improvisar segundo o seu coração; e quanto mais variações e combinações, maior o músico. Nas cordas, palavras não eram possíveis; mas todos que lá estavam conheciam as letras e se extasiavam com elas. Com cabeças meneando e mãos gesticulando com graça, eles seguiam o ritmo perfeitamente e o marcava com uma leve palmada na perna. O músico fechara os olhos e se achava completamente absorto em sua liberdade criativa, e na beleza do som; sua mente e seus dedos estavam em perfeita coordenação. E que dedos! Delicados e rápidos, pareciam ter vida própria. Só se tornavam quietos e relaxados ao fim da música, numa nota particular; mas, com incrível rapidez, logo começavam uma nova melodia, em tonalidade distinta. Quase nos hipnotizavam com sua graça e ligeireza de movimento. E a cordas, que sons lindos emitiam! Eram pressionadas pelos dedos da mão esquerda na tensão apropriada, ao passo que a mão direita as dedilhava com facilidade e controle magistral.

A lua era clara do lado de fora, e as sombras escuras estavam imóveis; o rio se via logo após a janela, um fluxo de prata em contraste com as árvores escuras e silenciosas da outra margem. Uma coisa estranha acontecia no espaço que é a mente. Ela vinha observando os movimentos graciosos dos dedos, ouvindo os doces sons, observado as cabeças que se moviam suavemente e as mãos rítmicas da plateia silenciosa. Subitamente, o observador, o escutador, desapareceu; ele não fora induzido à suspensão pelas melódicas cordas, mas estava totalmente ausente. Havia apenas o vasto espaço que é a mente. Todas as coisas da Terra e do homem estavam nela, mas se encontravam em seus limites exteriores, fracas e remotas. Dentro do espaço no qual nada havia, existia um movimento, e o movimento era a quietude. Era um movimento profundo e vasto, sem direção, sem motivo, que começava nos limites externos e avançava com incrível força ao centro – um centro que se encontra em toda parte no interior da quietude, no interior do movimento que é o espaço. Esse centro é total solicitude, incontaminada, incognoscível, uma solidão que não é isolamento, que não tem fim nem começo. É completa em si mesma, não é inventada; os limites externos estão nela, mas não lhe pertencem. Ela está lá, mas não no interior do escopo da mente humana. É o todo, a totalidade, mas não é abordável.



Havia quatro deles, todos rapazes que tinha aproximadamente a mesma idade, entre 16 e 18 anos. Bastante tímidos, eles precisam de persuasão, mas, uma vez que começaram, mal podiam parar, e suas perguntas ansiosas saiam aos borbotões. Dava para notar que eles haviam conversado sobre tais assuntos entre si com antecedência e prepararam perguntas por escrito; mas, após a primeira ou segunda, esqueceram o que haviam redigido, e suas palavras fluíam livremente dos próprios e espontâneos pensamentos. Embora não fossem filhos de pais abastados, eram imaculados e asseados em seu vestir.

“Quando conversou com os estudantes, há dois ou três dias”, começou o mais próximo, “o senhor disse algo sobre como a educação correta é necessária para que sejamos capazes de encarar a vida. Debatemos esse tema entre nós, mas não compreendemos muito bem.”

Que tipo de educação vocês têm agora?

“Ah, estamos na faculdade, e aprendemos as coisas habituais que são necessárias para determinada profissão”, ele respondeu. “Eu serei engenheiro; meus amigos aqui estudam física, literatura e economia, respectivamente. Estamos cursando o plano de estudos prescrito e lendo os livros indicados, e quando temos tempo, lemos um ou outro romance; mas afora os esportes, estudamos a maior parte do tempo.”

Vocês acham que isso é suficiente para terem boa educação para a vida?

“Pelo que o senhor disse, não”, replicou o segundo. “Mas isso é tudo que temos, e achamos que, de modo geral, estamos sendo educados de modo geral.”

Aprender a ler e escrever apenas, cultivar a memória e passar em algumas provas, adquirir certas capacidade ou habilidades para conseguir um emprego – isso é educação?

“Mas isso não é necessário?”

Sim, preparar-se para ter um meio correto de ganhar o sustento é essencial; mas não é o todo da vida. Há também o sexo, a ambição, a inveja, o patriotismo, a violência e muitas outras coisas. Vocês estão sendo educados para encarar essa vasta coisa chamada vida?

“Quem pode nos educar?” perguntou o terceiro. “Nossos mestres e professores parecem indiferentes. Alguns são inteligentes e cultos, mas nenhum dedica qualquer pensamento a esse tipo de coisa. Somos empurrados para a frente, e teremos sorte se conseguirmos obter nossos diplomas; tudo está se tornando bem difícil.”

“Exceto por nossos impulsos sexuais, que são bastante definidos”, disse o primeiro, “não sabemos nada da vida; todo o resto parece vago e remoto. Ouvimos nossos pais reclamando de falta de dinheiro, e percebemos que eles estão presos em certas rotinas pelo resto de seus dias. Assim, quem pode nos ensinar sobre a vida?”

Ninguém pode lhes ensinar, mas vocês podem aprender. Há uma vasta diferença entre aprender e ser ensinado. Aprender acontece ao longo da vida, ao passo que ser ensinado acaba dentro de algumas horas ou anos – e depois, pelo resto de sua vida, vocês repetirão aquilo que lhes foi ensinado, que logo se torna cinzas mortas; e assim a vida, que é algo vivo, torna-se um campo de batalha de esforços vãos. Vocês são atirados na vida sem tranquilidade ou oportunidade para compreendê-la; antes que saibam qualquer coisa sobre a vida, já estão bem no meio dela, casados, amarrados a um emprego, com a sociedade implacavelmente esbravejando a seu redor. Deve-se aprender sobre a vida desde a mais tenra infância, e não no último instante; quando já estão chegando à idade adulta, é quase tarde demais.

Vocês sabem o que é a vida? Ela se estende do momento em que nascem ao momento em que morrem, e talvez além. A vida é um todo vasto e complexo; é como uma casa em que tudo esta acontecendo a um só tempo. Vocês amam e odeiam; são cobiçosos, invejosos e, ao mesmo tempo, sentem que não deveriam ser. São ambiciosos, e há frustração ou sucesso, seguindo o rastro da angústia, do medo e da crueldade; e, cedo ou tarde, chaga o sentimento da futilidade de tudo isso. E há os horrores e a brutalidade da guerra, e a paz pelo terror; há o nacionalismo e a soberania, que apoiam a guerra; há a morte ao fim da estrada da vida, ou em algum ponto no meio dela. Há a busca por Deus, com suas crenças em conflito e as disputas entre religiões organizadas. Há o esforço para conseguir e manter um emprego; há casamento, filhos, doença e o jugo da sociedade e do Estado. A vida é tudo isso, e muito mais; e vocês são atirados nessa bagunça. Em geral, afundam nela, infelizes e perdidos; e se vocês sobrevivem subindo até o alto da escala, ainda são parte da bagunça. Isso é o que chamamos vida; perpétuo esforço e dor, com um pouco de alegria ocasional. Quem lhes ensinará tudo isso? Ou melhor, como vocês aprenderão sobre ela? Mesmo que tenham capacidade e talento, são atormentados por ambição, pelo desejo de fama, com suas frustrações e infelicidades. Tudo isso é vida, não é assim? E ultrapassar tudo isso também é vida.

“Felizmente, ainda sabemos pouquíssimo sobre toda essa luta”, prosseguiu o primeiro, “mas o que o senhor menciona já está potencialmente em nós. Eu quero ser um engenheiro famoso, quero vencer todos os outros; portanto, tenho de trabalhar duro e conhecer as pessoas certas; preciso planejar, calcular o futuro. Devo abrir meu caminho na vida.”

Aí está. Todos dizem que devem abrir seu caminho pela vida; cada um por si, seja em nome dos negócios, da religião ou do país. Você quer ser famoso, e o mesmo quer o seu vizinho, e o mesmo quer o vizinho dele; e é assim com todos, desde o mais alto ao mais baixo na Terra. Assim, construímos uma sociedade baseada em ambição, inveja e aquisição, em que cada homem é inimigo do outro; e vocês são “educados” para se conformar a essa sociedade em desintegração, para se encaixar em sua estrutura perversa.

“Mas o que podemos fazer?” perguntou o segundo. “Acho que devemos nos conformar à sociedade ou ser destruídos. Existe alguma saída para isso, senhor?”

No presente, vocês são supostamente educados para se encaixar nessa sociedade; suas capacidades são desenvolvidas para ganhar o sustento dentro desse padrão. Seus pais, os educadores, o governo, todos estão preocupados com sua eficiência e segurança financeira, não estão?

“Não sei do governo, senhor”, comentou o quarto, “mas nossos pais gastam o dinheiro arduamente ganho para permitir que tenhamos um diploma universitário, para que possamos obter uma forma de sustento. Eles nos amam.”

Amam mesmo? Vejamos. O governo deseja que vocês sejam eficientes burocratas para dirigir o Estado, bons trabalhadores industriais para manter a economia e soldados capazes de matar “o inimigo”. Não é assim?

“Suponho que o governo queira isso. Mas nossos pais são mais bondosos; eles pensam em nosso bem-estar e querem que sejamos bons cidadãos.”

Sim, eles querem que vocês sejam “bons cidadãos”, o que significa ser respeitavelmente ambicioso, perpetuamente acumulador e participante da crueldade socialmente aceita que se chama competição, para que eles possam estar seguros. Isso é o que constitui o assim chamado bom cidadão; mas será de fato bom, ou algo muito maléfico?  Vocês dizem que seus pais os amam; mas será mesmo? Não estou sendo cínico. O amor é uma coisa extraordinária; sem ele a vida é estéril. Vocês podem ter muitas posses e ocupar o trono do poder, mas, sem a beleza e a grandeza do amor, a vida logo se torna infelicidade e confusão. Amor indicaria que aqueles que são amados recebem total liberdade para crescer em sua plenitude, para ser algo maior do que meras máquinas sociais, não é? O amor não obriga, nem abertamente nem por ameaças sutis de deveres e responsabilidades. Onde há qualquer forma de coerção ou uso de autoridade, não há amor.

“Não acho que este seja o tipo exato de amor de que meu amigo estava falando”, disse o terceiro. “Nossos pais nos amam, mas não dessa maneira. Conheço um garoto que quer ser artista, mas o pai quer que ele seja um homem de negócios e ameaça abandoná-lo se o filho não cumprir esse dever.”

O que os pais chamam de dever não é amor, é uma forma de coerção; e a sociedade apoiará os pais, pois o que eles estão fazendo é muito respeitável. Os pais estão ansiosos para que o menino encontre um emprego seguro e ganhe algum dinheiro; mas, com uma população tão enorme, há mil candidatos para cada emprego, e os pais acham que o menino jamais ganharia seu sustento com arte; portanto tentam forçá-lo a abandonar o que veem como um capricho tolo. Consideram uma necessidade que ele se conforme à sociedade, que seja respeitável e seguro. Isso é o chamam de amor. Mas será? Ou é medo, coberto pela palavra “amor”?

“Quando você coloca dessa maneira, não sei o que dizer”, replicou o terceiro.

Existe alguma outra maneira de colocar? O que acabou de ser dito pode ser desagradável, mas é um fato. A chamada educação que vocês têm agora, obviamente, não os ajuda a encarar esse vasto complexo da vida; vocês chegam despreparados e são engolidos por ele.

“Mas quem pode nos educar para compreender a vida? Não temos tais mestres, senhor.”

O educador também deve ser educado. Os mais velhos dizem que vocês, a próxima geração, devem criar um mundo diferente, mas eles não acreditam nisso, de modo algum. Pelo contrário, com muito pensamento e cuidado, eles se dedicam a “educá-los” a se conformarem ao velho padrão, com alguma modificação. Embora digam coisas muito diferentes, os professores e pais, apoiados pelo governo e pela sociedade em geral, garantem que vocês sejam treinados de modo que se conformem à tradição e aceitem a ambição e a inveja como o modo natural de vida. Não estão minimamente preocupados com um novo modo de vida, e é por isso que o próprio educador não está sendo corretamente educado. A geração mais velha criou esse mundo de guerra, este mundo de antagonismo e divisão entre homem e homem, e a nova geração segue aplicadamente em seus passos.

“Mas nós queremos ser educados corretamente, senhor. O que podemos fazer?”

Antes de tudo vejam, claramente um fato simples: que nem o governo, nem seus presentes professores, nem seus pais se interessam por educá-los corretamente; se fosse o caso, o mundo seria completamente diferente, não haveria guerra. Assim, se vocês querem ser corretamente educados, terão de fazê-los sozinhos; e quando forem adultos, vocês se certificarão de que seus próprios filhos sejam corretamente educados.

“Mas como podemos nos educar corretamente? Precisamos de alguém para nos ensinar.”

Vocês têm professores para instruí-los em matemática, literatura e outras coisas, mas a educação é algo mais profundo e amplo que o mero acúmulo de informações. Educação é o cultivo da mente de modo que a ação não seja autocentrada; é aprender ao longo da vida a derrubar as paredes que a mente constrói para estar segura, e de onde surge o medo com todas as suas complexidades. Para serem corretamente educados, vocês têm de estudar muito e não ter preguiça. Sejam bons em jogos, não para vencer o outro, mas para se divertir. Comam a comida certa, e mantenham-se fisicamente saudáveis. Deixem que sua mente esteja alerta e capaz de lidar com os problemas da vida, não como hindu, comunista ou cristão, mas como ser humano. Para serem corretamente educados, vocês devem compreender a si mesmos; têm de seguir aprendendo sobre si mesmo. Quando param de aprender, a vida se torna feia e infeliz. Sem bondade e amor não somos corretamente educados.  


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012

4 comentários:

  1. Boa tarde Roberto,

    "Vocês sabem o que é a vida? Ela se estende do momento em que nascem ao momento em que morrem, e talvez além." Interessante esta frase de JK, a manifestação da "vida além vida". Tinha observado isto?
    "Para serem corretamente educados, vocês devem compreender a si mesmos; têm de seguir aprendendo sobre si mesmo.Quando param de aprender, a vida se torna feia e infeliz."
    Essa frase resumi tudo, não tenha a crença que possamos ser tutores de si mesmo desde o nascimento, mas depois que aprendemos a "andar", devemos fazê-lo sozinho, ou nossos pais viverão para sempre para segurar nossas mãos? Felizmente não. A lei de evolução nos condiciona a isto. E como dizem, a prática leva a perfeição, ao mesmo tempo que aumento meus estudo, vou percebendo, exatamente o contrário, o quanto ainda tenho por aprender. Compreender o tamanho de nossa pequenez, é algo interessante, isto não tem nenhuma conotação religiosa, me refiro a dimensão do por vir, onde a vida se apresenta e manifesta clara para os observadores atentos, como alerta JK. Conto contigo para que continuemos a educar-nos.

    Grande abraço

    Luiz Otávio

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  2. Roberto,

    Leia "...não tenho a crença..." no terceiro parágrafo.

    Abraço,

    Luiz Otávio

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  3. Boas tardes, Luiz!
    Quanto à manifestação de JK que nos leva a falar da "vida além vida", sim, já tinha observado. E vou me atrever a fazer o seguinte comentário: Nas leituras que faço de suas palestras e/ou comentários sobre o viver, observo que ele sempre arrefece esse assunto quando ele é mencionado – essa é minha observação. Agora, quanto ao por que dessa conduta? Compreendo, ou melhor, imagino que ele procura sempre nos situar no aqui e agora. Desse modo, não alimenta nossa imaginação e nosso já exacerbado condicionamento com aquilo não faz parte da realidade a ser vivida, enquanto estamos vivos. Nunca observei ele se referindo, ou se preocupando, em nos fazer compreender a(s) vida(s) futura(s). Essa minha observação/compreensão é para o momento.
    Abração,
    rjtl

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  4. Boa noite Roberto,

    Consinto, de fato a preocupação procede, principalmente se considerarmos uma platéia heterogênea ansiosa por respostas para suas angústias. Quanto a mim, por enquanto, vou-me preocupar com o agora e repetindo um dito popular, cito: "o futuro a Deus pertence", embora seja uma consequência direta do presente.

    Um abraço,

    Luiz Otávio

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