Jiddu Krishnamurti (*)
CAÍRAM FORTES CHUVAS COM vários
centímetros por dia durante mais de uma semana, e o rio estava muito cheio. Já
transbordara de suas margens, e algumas aldeias foram alagadas. Os campos
estavam debaixo d’água, e o gado teve de ser transferido para um terreno mais
alto. Alguns centímetros mais e o rio cobriria a ponte, e, então, haveria
verdadeiros problemas; mas quando estava prestes a alcançar o ponto perigoso,
as chuvas pararam e o rio começou a baixar. Alguns macacos que haviam se refugiado
nas árvores estavam isolados, e teriam de permanecer lá por um ou dois dias.
No início de certa manhã, quando as
águas haviam baixado, partimos pelo campo aberto, que era plano quase até o pé
das montanhas. A estrada passava por uma aldeia após outra, e por fazendas
equipadas com máquinas modernas. Era primavera, e ao longo da estrada as
árvores estavam em flor. O carro avançara suavemente. Havia o ronronar do
motor, bem como o murmúrio da borracha dos pneus na estrada; e, ainda assim,
havia um extraordinário silêncio em todos os lugares, entre as árvores, no rio,
e sobre a terra plantada.
A mente fica em silêncio apenas com a abundância
de energia, quando há aquela atenção em que cessa toda contradição, toda pulsão
do desejo em diferentes direções. O esforço do desejo de estar em silêncio não
gera silêncio. O silêncio não deve ser adquirido através de qualquer forma de
coerção, não é a recompensa da repressão ou mesmo da sublimação. Mas a mente
que não está em silêncio jamais é livre. E só para a mente silenciosa é que os
céus se abrem. O êxtase que a mente procura não é encontrado através de busca,
nem reside na fé. Só a mente silenciosa pode receber aquela benção que não é da
Igreja nem da crença. Para a mente estar em silêncio, todos os seus cantos
contraditórios devem se unir e se fundir na chama da compreensão. A mente
silenciosa não é uma mente reflexiva. Para refletir, deve haver o observador e
o observado, o experimentador carregado de passado. Na mente silenciosa, não há
centro a partir do qual se transformar, ser ou pensar. Todo desejo é
contradição, pois cada centro de desejo se opõe a outro centro. O silêncio da
mente total é meditação.
Era um homem bastante jovem, com uma cabeça
grande, olhos claros e mãos de aparência habilidosa. Falava com facilidade e
autoconfiança, e trouxera a esposa junto, uma moça digna que, evidentemente,
não diria nada. Ela, provavelmente, viera sob a persuasão dele, e preferia
ouvir.
“Sempre me interessei por questões religiosas”,
disse ele, “e logo no início da manhã, antes que as crianças acordem e o
burburinho da casa comece, passo um tempo considerável praticando a meditação.
Acho-a muito útil para ganhar controle da mente e cultivar certas virtudes
necessárias. Ouvi seu discurso sobre meditação há alguns dias, mas como sou
novato em seus ensinamentos, não fui capaz de entender bem. Mas não vim para
falar sobre isso. Vim para falar do tempo – o tempo como um meio para a
percepção do Supremo. Até onde vejo, o tempo é necessário para o cultivo
daquelas qualidades e sensibilidades da mente essenciais para que a iluminação
seja alcançada. É assim, não é?”
Se começar por presumir certas coisas,
será possível encontrar a verdade da questão? As conclusões não impedem a
clareza de pensamento?
“Sempre dei como certo que o tempo é
necessário para atingir a libertação. Isto é o que a maioria dos livros
religiosos afirma, e eu nunca questionei. Creio que há indivíduos aqui e ali
que alcançaram esse estado de êxtase instantaneamente; mas são poucos,
pouquíssimos. O restante de nós deve ter um tempo, curto ou longo, no qual
preparar a mente para receber aquele êxtase. Mas compreendo bem o que você quer
dizer quando afirma que, para pensar com clareza, a mente deve estar livre de
conclusões.”
E é extremamente árduo estar livre
delas, não é?
Pois bem, o que entendemos por tempo?
Há o tempo do relógio, o tempo como passado, presente e futuro. Há tempo como
memória, tempo como distância percorrida daqui até ali e há tempo como
resultado, o processo de se tornar algo. Tudo isso é o que entendemos por
tempo. E é possível para a mente estar livre do tempo, ir além de suas limitações?
Comecemos com o tempo cronológico. É possível estar livre do tempo no sentido
real, cronológico?
“Não, se queremos pegar um trem! Para
estarmos saudavelmente ativos neste mundo, e para manter algum tipo de ordem, o
tempo cronológico é essencial.”
E, então, há tempo como memória,
hábito, tradição; e o tempo como esforço de alcançar, de realizar, de se
tornar. Obviamente, é preciso tempo para aprender uma profissão, ou adquirir
uma habilidade. Mas o tempo também é necessário para a percepção do Supremo?”
“A mim, parece que sim.”
O que é que está alcançando,
percebendo?
“Suponho que é o que você chama de ‘eu’.”
Que é um conjunto de memórias e
associações, tanto conscientes como inconscientes. É a entidade que goza e
sofre, que pratica virtudes, que adquire conhecimento, que acumula experiência,
a entidade que conheceu realização e frustração, e é quem pensa que existe a
alma, o Atman, o Eu Superior. Essa
entidade esse “mim”, que é memória, pensa que alcançará o Supremo ao longo do
tempo. Mas seu “Supremo” é algo que ela formulou e, portanto, está também no
domínio do tempo, não é?
“Da maneira como você expõe, parece que
aquele que faz o esforço, e o objetivo pelo qual ele se esforça, estão
igualmente na esfera do tempo.”
Através do tempo você só pode atingir o
que o tempo criou. O pensamento é a reação da memória, e o pensamento só pode
perceber aquilo que o pensamento concebeu.
“Você está dizendo, senhor, que a mente
deve estar livre de memória e do desejo de alcançar, de perceber?”
Logo chegaremos a esse ponto. Se
possível, abordemos o problema de modo diferente. Tomemos a violência, por
exemplo, e os ideais de não violência. Dizem que o ideal de não violência
dissolve a violência. Mas será mesmo? Digamos que sou violento, e meu ideal é
ser não violento. Há um hiato, uma lacuna entre o que realmente sou e aquilo
que eu deveria ser, o ideal. Cobrir essa distância intermediária leva tempo; o
ideal deve ser atingido progressivamente, e durante esse intervalo de abordagem
gradual tenho a oportunidade de me abandonar ao prazer da violência. O ideal é
o oposto do que sou, e todo oposto contém em si a semente de seu próprio
oposto. O ideal é uma projeção do pensamento, que é memória, e a prática do
ideal é uma atividade autocentrada, tal como a violência. Ao longo de séculos
foi dito – e nós continuamos a repetir – que o tempo é necessário para nos
livrarmos da violência; mas isso é um mero hábito, e não há sabedoria por trás
disso. Ainda somos violentos. Portanto, o tempo não é o fator da liberdade; o
ideal da não violência não liberta a mente da violência. A violência não
poderia simplesmente cessar, sem ser amanhã, ou daqui a dez anos?
“Você quer dizer instantaneamente?”
Quando usa essa palavra, você não esta
pensando ou sentindo ainda em termos de tempo? A violência não pode apenas
cessar? E não em determinado momento?
“Será possível uma coisa dessas?”
Só com a compreensão do tempo. Estamos
acostumados com ideais, temos o hábito de resistir, reprimir, sublimar e
substituir tudo que envolve esforço e luta ao longo do tempo. A mente pensa em
hábitos; é condicionada ao gradualismo, e passou a considerar o tempo como meio
de alcançar a libertação da violência. Com o entendimento da falsidade de todo
esse processo, a verdade da violência é vista, e este é o fator libertador, e não
o ideal ou o tempo.
“Eu acho que compreendo o que você está
dizendo, ou melhor, sinto a verdade disso. Mas não é muito difícil libertar a
mente do hábito?”
É difícil quando você combate o hábito.
Por exemplo, o hábito de fumar. Combater esse hábito é dar-lhe vida. O hábito é
mecânico, e resistir só alimenta a máquina, dá mais poder a ela. Mas se você
considera a mente e observa a formação de seus hábitos, então, como o
entendimento do problema maior, o menor se torna insignificante e se desfaz.
“Por que a mente forma hábitos?”
Esteja cônscio dos mecanismos de sua
própria mente e você descobrirá por quê. A mente forma hábitos a fim de estar
segura, certa, imperturbável, a fim de ter continuidade. Memória é hábito.
Falar um determinado idioma é um processo de memória, hábito; mas o que se
expressa na linguagem, uma série de pensamentos e sentimentos, também é
habitual, se baseia naquilo que lhe foi dito, na tradição e assim por diante. A
mente se move do conhecido para o conhecido, de uma certeza para outra; por
isso, nunca há liberdade do conhecido.
Isso nos traz de volta ao ponto em que
começamos. Presume-se que o tempo é necessário para a percepção do Supremo. Mas
o que o pensamento pode conceber ainda está no campo do tempo. A mente não tem
a menor possibilidade de formular o desconhecido. Ela pode especular a respeito
disso, mas sua especulação não é o desconhecido.
“Então, o problema se coloca; como
podemos perceber o Supremo?”
Não por qualquer método. Praticar um
método é cultivar outro conjunto de memórias, vinculado ao tempo; mas a
percepção só é possível quando a mente já não está nas amarras do tempo.
“A mente pode se libertar de suas
amarras autoproduzidas? Um agente externo não é necessário?”
Quando você busca um agente externo,
está de volta a seu condicionamento, em suas conclusões. Nossa única
preocupação é com a pergunta: “A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas?”
Todas as outras questões são irrelevantes e impedem que a mente aborde esta
pergunta. Não há atenção quando há motivo, quando há a pressão para alcançar,
para perceber; ou seja, quando a mente está buscando um resultado, um fim. A
mente descobrirá a solução desse problema, não através de argumentos, opiniões
convicções ou crenças, mas através da própria intensidade da questão.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti.
Rio de Janeiro: Nova Era, 2012