segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ciência, fé e extrapolação ou...


Roberto Lira


Marcelo Gleiser publicou ontem na sua coluna da Folha de São Paulo (aqui) o texto intitulado “Ciência, fé e extrapolação”, abordando a questão da compreensão do mundo do ponto de vista da ciência e da fé. Gleiser inicia sua manifestação:

“Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença”? Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a fé como também informa de que modo um indivíduo se relaciona com o mundo."

Na nossa insciência, ficamos questionando se há outra possibilidade de compreendermos o mundo, para condução de nossa vida, além do ponto de vista dicotômico da ciência e da fé? Perceber a realidade nos relacionamentos com as coisas e/ou com as pessoas requer método científico ou alguma crença? É necessário que nossas ações se balizem em comprovações científicas ou sejam amparadas pelas crenças? A observação isenta de preconceitos, a atenção reflexiva, não seria a forma mais natural de compreendermos nossas ações no referido mundo?

Para Marcelo Gleiser:

“Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o "desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido com o ‘conhecível’.

“A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto, conhecível), e outra fora dele (e que é, portanto, desconhecível ou inescrutável).”

Consentimos com a observação do Gleiser quando ele afirma que e o secular atrito entre fé e ciência decorre de se tentar igualar duas “realidades” tão distintas e que uma pertence a este mundo e outra está fora dele. Mas, discordamos quando ele as classifica: uma como “conhecível” e a outra como “inescrutável”. Entendemos que aquela que ele designa de “conhecível” pode até ser conhecível, mas é transitória, especialmente quando se trata dos nossos relacionamentos. É como já dizia o filósofo Heráclito de Éfeso: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou”. Quanto a que ele chama de “inescrutável”, pode ser que assim o seja por meio do método científico, mas quem garante que ela não possa ser percebida ou compreendida por outros meios?

 O Marcelo finaliza seu texto afirmando que:

“Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de arriscar e de estar errada. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.”

Consentimos, também, com a afirmação acima apresentada. Mas, gostaríamos de acrescentar nosso entendimento de que, além dos cientistas outros seres, inscientes cientificamente, também possam num insight enxergar mais além, ou melhor, perceber e/ou compreender aquilo que ele chama de inescrutável”. Os cientistas antes de testarem suas teorias não têm uma intuição sobre o objeto, ou fato, a ser estudado independente de análise, raciocínio ou crença?

Atenção! Aqui e agora!





terça-feira, 14 de agosto de 2012

A "atenção passiva"




Roberto Lira

Ao depararmo-nos com a sugestão: mantenha-se passivamente atento, não nos parece que estamos diante de um paradoxo? Geralmente reagimos dizendo: como manter uma atenção passiva, se para ficarmos atento requer estar alerta, concentrado; enquanto que, ser passivo é não ter iniciativa, é ficarmos indiferente ou apático? Como unificar essas duas ações que semanticamente nos parece tão antagônicas?
Para achegarmo-nos a alguma compreensão desse aparente paradoxo que nos possa ser útil, talvez seja profícuo agregarmos a questão do observador e da coisa observada. Para isso, vamos nos amparar em um trecho do livro As Paixões do Ego*, de Humberto Mariotti, páginas 248/9, onde ele comenta essa questão da atenção passiva denominando-a de a fenomenologia da inocência:
 “Atenção passiva: a fenomenologia da inocência
Recordemos que Bohm assinala que a noção de que o observador não pode ser separado daquilo que observa surgiu na física quântica, como condição necessária ao entendimento das leis fundamentais da matéria. Na verdade, essa noção remonta às tradições védicas da Índia. Segundo Bohm, a descoberta fundamental de Krishnamurti foi perceber que não nos damos conta do que realmente acontece porque não temos consciência de nossos processos de pensamento. Para o filósofo indiano, em geral nos damos conta do que estamos pensando, mas pouco ou nada sabemos sobre como estamos pensando num determinado momento. Por outras palavras, não fizemos a epistemologia do nosso pensar. Isso decorre de que não estamos suficientemente atentos para ser capazes de observar os nossos processos de pensamento.
Como conhecer a estrutura e a função desses processos? Segundo Krishnamurti, por meio da auto-observação, mais especificamente do método que ele denomina de atenção passiva, que consiste em refletir e, ao mesmo tempo, estar atento ao que acontece enquanto se reflete. Mas é importante fazê-lo sem crítica, sem aceitar ou rejeitar desde logo o que se está percebendo. Sem tentar, enfim, dar de imediato “um sentido” ao que se percebe, mesmo porque esse “sentido”, no mais das vezes, não passa de uma forma de reduzir tudo ao que achamos que faz sentido.
Trata-se de refletir sem tentar logo de saída pôr ordem na confusão que muitas vezes surge em nossa mente enquanto pensamos. É fundamental não ceder à resistência inicial ao contato com idéias novas. Pelo contrário, é preciso deixá-las vir e examiná-las em seus mínimos detalhes, buscar a familiaridade com elas. Não nos esqueçamos de que essa resistência, esse espanto inicial, representava, para Aristóteles, o ponto de partida da investigação filosófica e não uma oposição a ela.
No entender de Krishnamurti, a atitude de evitar a intervenção precoce da crítica e da vontade permitirá que o pensamento se auto-regule. Por ser o cérebro um sistema autopoiético, a não-interferência imediata em seus processos permitirá que nos beneficiemos dos frutos dessa auto-regulação, que é sistêmica e acontece quando conseguimos que nossa mente fique quieta.”  

Segundo Krishnamurti, a auto-observação nos torna capaz de perceber que somos nossos próprios preconceitos (pensamentos) e não apenas observadores isentos destes. Ou seja, o observador é a coisa observada. Tal consideração não é difícil de entender intelectualmente, mas transformá-lo em mudanças significativas no viver, certamente, é o xis da questão. Essas mudanças, para Krishnamurti, não são desenvolvidas gradualmente: surgem instantaneamente, num insight; não dependem do tempo, do pensamento e por isso é imprescindível estar atento a eles. Ele afirma que quando observamos um sentimento, ou pensamento, por tempo suficiente geralmente ele se modifica ou desaparece. Todavia se a observação ocorre de forma coercitiva, tentando nos livrar dele, continuaremos como observadores. Desse modo, o sentimento, ou pensamento, cedo ou tarde voltará a nos incomodar, tendo em vista ter sido reprimido e não vivido na sua totalidade.
Manter essa “atenção passiva”, de modo integral nos nossos relacionamentos, é algo que só ocorre ocasionalmente no nosso viver. Mesmo assim, se estivermos consciente que ela é possível e quiçá necessária para alcançarmos a almejada liberdade que a quietude da mente pode nos proporcionar.
Atenção! Aqui e agora! 

* As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade. Humberto Mariotti. São Paulo: Palas Athena, 2000. 356 p.









segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Carma


Jiddu Krishnamurti (*)


O SILÊNCIO NÃO É para ser cultivado, não é para ser deliberadamente produzido; não é para ser buscado, racionalizado ou meditado. O cultivo deliberado do silêncio é como a satisfação de um prazer há muito desejado; o desejo de silenciar a mente é apenas a busca de sensação. Esse silêncio é somente uma forma de resistência, um isolamento que leva a deterioração. O silêncio que é comprado é uma coisa de mercado no qual há o ruído da atividade. O silêncio vem com a ausência do desejo. O desejo é ágil, astuto e profundo. A recordação interrompe a varredura do silêncio, e uma mente presa na experiência não pode estar silenciosa. O tempo, o movimento de ontem desaguando no hoje e no amanhã, não é silêncio. Com o cessar desse movimento, há silêncio, e só então aquilo que é inefável pode tomar forma.
 

“Eu vim para falar sobre carma. Claro que tenho algumas opiniões sobre isso, mas gostaria de conhecer as suas”.

Opinião não é verdade; devemos por de lado as opiniões para encontrar a verdade. Existem inúmeras opiniões, mas a verdade não é deste ou daquele grupo. Para o entendimento da verdade, todas as ideias, conclusões e opiniões precisam cair como as folhas secas de uma árvore. A verdade não é para ser encontrada em livros, em conhecimento, na experiência. Se você estiver buscando opiniões, não encontrará nenhuma aqui.

“Mas podemos conversar sobre carma e tentar entender sua importância, não?”

Isso, claro, é um assunto muito diferente. Para entender, as opiniões e as conclusões precisam cessar.

“Por que você insiste nisso?”

Você conseguirá entender algo se já tiver decidido sobre isso ou se repetir as conclusões de outra pessoa? Para encontrar a verdade desse assunto, não devemos abordá-lo de uma nova maneira, com uma mente que não esteja envolta em preconceitos? O que é mais importante: estar livre de conclusões, de preconceitos, ou especular sobre alguma abstração? Não é mais importante encontrar a verdade do que discutir sobre o que é a verdade? Não é importante descobrir a verdade com respeito ao carma? Ver o falso como o falso é começar a entender isso, não é? Como podemos ver a verdade ou o falso se nossa mente está firmemente entrincheirada na tradição, nas palavras e nas explicações? Se a mente estiver amarrada a uma crença, como ela poderá ir longe? Para viajar para longe, a mente precisa estar livre. A liberdade não é algo a ser obtido no final de um longo esforço; ela deve estar logo no início da viagem.

“Quero descobrir o que carma significa para você?”

Senhor, vamos fazer a viagem de descobrimento juntos. Simplesmente repetir as palavras de outra pessoa não tem muita importância. É como tocar um disco. A repetição ou imitação não produz liberdade. O que você quer dizer com carma?

“É uma palavra em sânscrito que significa fazer, ser, agir e assim por diante. Carma é ação, e ação é o resultado do passado. A ação não pode existir sem o condicionamento da formação. Por meio de uma série de experiências do condicionamento e do conhecimento, a formação da tradição é construída, não apenas durante a vida atual do indivíduo e do grupo, mas por meio de muitas encarnações. A constante ação e interação entre a formação, que é o “eu”, e sociedade, a vida, é o carma; e o carma cria um compromisso moral para a mente, o “eu”. O que fiz em minha vida passada, ou mesmo ontem, continua valendo e me molda, proporcionando-me dor ou prazer no presente. Há o carma de grupo ou coletivo e o individual. Tanto o de grupo quanto o individual estão contidos na cadeia de causa e efeito. Haverá sofrimento ou alegria, castigo ou recompensa, de acordo com que fiz no passado”.

Você diz que a ação resulta do passado. Essa ação não é ação absolutamente, mas apenas uma reação, não é? O condicionamento, a formação, reage a estímulos; essa reação é a resposta da memória, que não é ação, mas carma. No momento, não estamos preocupados com o que é ação. Carma é a reação que surge de certas causas e produz certos resultados. Carma é essa cadeia de causa e efeito. Basicamente, o processo do tempo é carma, não é? Desde que haja um passado, deve haver o presente e o futuro. Hoje e amanhã são os efeitos de ontem; ontem em conjunção com hoje cria o amanhã. Carma conforme é entendido de modo geral, é o processo de compensação.

“Como diz, carma é um processo do tempo, e a mente é resultado do tempo. Somente uns poucos afortunados podem escapar das garras do tempo; o restante de nós está unido ao tempo. O que fizemos no passado, bem ou mal, determina o que somos no presente.”

A formação, o passado, é um estado estático? Não está passando por modificações constantes? Você não é o mesmo hoje do que era ontem; tanto fisiológica quanto psicologicamente, há uma mudança constante acontecendo, não é?

“Claro.”

Então, a mente não é um estado fixo. Nossos pensamentos são transitórios, continuamente em mudança; eles são a resposta da formação. Se eu for criado em determinada classe social, em uma cultura definida, responderei aos desafios, aos estímulos, de acordo com meu condicionamento. Com a maioria de nós, esse condicionamento está tão enraizado que a resposta é quase sempre segundo o padrão. Nossos pensamentos são a resposta da formação. Nós somos a formação; esse condicionamento não está separado nem é dessemelhante de nós. Com a mudança da formação, nossos pensamentos também mudam.

“Mas, certamente, o pensador é totalmente diferente da formação, não é?”

Será? O pensador não é o resultado dos pensamentos dele? Ele não é composto de seus pensamentos? Há uma entidade separada, um pensador separado de seus pensamentos? O pensamento não criou o pensador, não deu a ele permanência no meio da impermanência dos pensamentos? O pensador é o refúgio do pensamento e se coloca em níveis diferentes de permanência.

“Percebo que isso é assim, mas é realmente um choque para mim perceber os truques que o pensamento está usando com ele mesmo.”

O pensamento é a resposta da formação, da memória; a memória é o conhecimento, o resultado da experiência. Essa memória, por meio de mais experiências e respostas, torna-se mais forte, maior, mais aguçada, mais eficiente. Uma forma de condicionamento pode ser substituída por outra, mas ainda será condicionamento. A resposta desse condicionamento é carma, não é? A resposta da memória é chamada de ação, mas ela é apenas reação; essa “ação” gera mais reação e assim há a suposta cadeia de causas e efeitos. Mas a causa também não é o efeito? Nem causa nem efeito são estáticos. Hoje é o resultado de ontem, e hoje é a causa de amanhã; o que foi a causa torna-se o efeito, e o efeito, a causa. Uma deságua na outra. Não existe um momento em que a causa não seja também o efeito. Somente o especializado é fixo em sua causa e, portanto, em seu efeito. O fruto do carvalho não pode tornar-se outra coisa que não seja um carvalho. Na especialização, há morte; mas o homem não é uma entidade especializada, ele pode ser o que desejar. Ele pode abrir caminho através de seu condicionamento – e ele precisará fazer isso, se quiser descobrir o real. Você precisa cessar de ser um suposto brâmane para perceber Deus.

O Carmo é um processo do tempo, o passado movendo-se pelo presente para o futuro; essa cadeia é o modo de pensar. O pensamento é o resultado do tempo, e só pode existir aquilo que é imensurável, eterno, quando o processo do pensamento cessa. A quietude da mente não pode ser induzida, não pode ser produzida por meio de uma prática ou disciplina. Se a mente for tornada quieta, então o que quer que chegue a ela será apenas uma autoprojeção, a resposta da memória. Com a compreensão do condicionamento da mente, com a conscientização sem escolha das próprias respostas dela como pensamentos e sentimentos, a tranquilidade chega à mente. Essa quebra da cadeia do carma não é uma questão de tempo; pois, por meio do tempo, o eterno não existe.

O carma precisa ser entendido como um processo total, não apenas como algo do passado. O passado é tempo, que também é o presente e o futuro. Tempo é memória, palavra, ideia. Só quando a palavra, o nome, a associação e a experiência não existem é que a mente está quieta, não só nas camadas superficiais, mas completa e integralmente.


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era 2009

domingo, 5 de agosto de 2012

Tempo, hábito e ideais


Jiddu Krishnamurti (*)



CAÍRAM FORTES CHUVAS COM vários centímetros por dia durante mais de uma semana, e o rio estava muito cheio. Já transbordara de suas margens, e algumas aldeias foram alagadas. Os campos estavam debaixo d’água, e o gado teve de ser transferido para um terreno mais alto. Alguns centímetros mais e o rio cobriria a ponte, e, então, haveria verdadeiros problemas; mas quando estava prestes a alcançar o ponto perigoso, as chuvas pararam e o rio começou a baixar. Alguns macacos que haviam se refugiado nas árvores estavam isolados, e teriam de permanecer lá por um ou dois dias.

No início de certa manhã, quando as águas haviam baixado, partimos pelo campo aberto, que era plano quase até o pé das montanhas. A estrada passava por uma aldeia após outra, e por fazendas equipadas com máquinas modernas. Era primavera, e ao longo da estrada as árvores estavam em flor. O carro avançara suavemente. Havia o ronronar do motor, bem como o murmúrio da borracha dos pneus na estrada; e, ainda assim, havia um extraordinário silêncio em todos os lugares, entre as árvores, no rio, e sobre a terra plantada.  

A mente fica em silêncio apenas com a abundância de energia, quando há aquela atenção em que cessa toda contradição, toda pulsão do desejo em diferentes direções. O esforço do desejo de estar em silêncio não gera silêncio. O silêncio não deve ser adquirido através de qualquer forma de coerção, não é a recompensa da repressão ou mesmo da sublimação. Mas a mente que não está em silêncio jamais é livre. E só para a mente silenciosa é que os céus se abrem. O êxtase que a mente procura não é encontrado através de busca, nem reside na fé. Só a mente silenciosa pode receber aquela benção que não é da Igreja nem da crença. Para a mente estar em silêncio, todos os seus cantos contraditórios devem se unir e se fundir na chama da compreensão. A mente silenciosa não é uma mente reflexiva. Para refletir, deve haver o observador e o observado, o experimentador carregado de passado. Na mente silenciosa, não há centro a partir do qual se transformar, ser ou pensar. Todo desejo é contradição, pois cada centro de desejo se opõe a outro centro. O silêncio da mente total é meditação.



Era um homem bastante jovem, com uma cabeça grande, olhos claros e mãos de aparência habilidosa. Falava com facilidade e autoconfiança, e trouxera a esposa junto, uma moça digna que, evidentemente, não diria nada. Ela, provavelmente, viera sob a persuasão dele, e preferia ouvir.

“Sempre me interessei por questões religiosas”, disse ele, “e logo no início da manhã, antes que as crianças acordem e o burburinho da casa comece, passo um tempo considerável praticando a meditação. Acho-a muito útil para ganhar controle da mente e cultivar certas virtudes necessárias. Ouvi seu discurso sobre meditação há alguns dias, mas como sou novato em seus ensinamentos, não fui capaz de entender bem. Mas não vim para falar sobre isso. Vim para falar do tempo – o tempo como um meio para a percepção do Supremo. Até onde vejo, o tempo é necessário para o cultivo daquelas qualidades e sensibilidades da mente essenciais para que a iluminação seja alcançada. É assim, não é?”

Se começar por presumir certas coisas, será possível encontrar a verdade da questão? As conclusões não impedem a clareza de pensamento?

“Sempre dei como certo que o tempo é necessário para atingir a libertação. Isto é o que a maioria dos livros religiosos afirma, e eu nunca questionei. Creio que há indivíduos aqui e ali que alcançaram esse estado de êxtase instantaneamente; mas são poucos, pouquíssimos. O restante de nós deve ter um tempo, curto ou longo, no qual preparar a mente para receber aquele êxtase. Mas compreendo bem o que você quer dizer quando afirma que, para pensar com clareza, a mente deve estar livre de conclusões.”

E é extremamente árduo estar livre delas, não é?

Pois bem, o que entendemos por tempo? Há o tempo do relógio, o tempo como passado, presente e futuro. Há tempo como memória, tempo como distância percorrida daqui até ali e há tempo como resultado, o processo de se tornar algo. Tudo isso é o que entendemos por tempo. E é possível para a mente estar livre do tempo, ir além de suas limitações? Comecemos com o tempo cronológico. É possível estar livre do tempo no sentido real, cronológico?

“Não, se queremos pegar um trem! Para estarmos saudavelmente ativos neste mundo, e para manter algum tipo de ordem, o tempo cronológico é essencial.”

E, então, há tempo como memória, hábito, tradição; e o tempo como esforço de alcançar, de realizar, de se tornar. Obviamente, é preciso tempo para aprender uma profissão, ou adquirir uma habilidade. Mas o tempo também é necessário para a percepção do Supremo?”

“A mim, parece que sim.”

O que é que está alcançando, percebendo?

“Suponho que é o que você chama de ‘eu’.”

Que é um conjunto de memórias e associações, tanto conscientes como inconscientes. É a entidade que goza e sofre, que pratica virtudes, que adquire conhecimento, que acumula experiência, a entidade que conheceu realização e frustração, e é quem pensa que existe a alma, o Atman, o Eu Superior. Essa entidade esse “mim”, que é memória, pensa que alcançará o Supremo ao longo do tempo. Mas seu “Supremo” é algo que ela formulou e, portanto, está também no domínio do tempo, não é?

“Da maneira como você expõe, parece que aquele que faz o esforço, e o objetivo pelo qual ele se esforça, estão igualmente na esfera do tempo.”

Através do tempo você só pode atingir o que o tempo criou. O pensamento é a reação da memória, e o pensamento só pode perceber aquilo que o pensamento concebeu.

“Você está dizendo, senhor, que a mente deve estar livre de memória e do desejo de alcançar, de perceber?”

Logo chegaremos a esse ponto. Se possível, abordemos o problema de modo diferente. Tomemos a violência, por exemplo, e os ideais de não violência. Dizem que o ideal de não violência dissolve a violência. Mas será mesmo? Digamos que sou violento, e meu ideal é ser não violento. Há um hiato, uma lacuna entre o que realmente sou e aquilo que eu deveria ser, o ideal. Cobrir essa distância intermediária leva tempo; o ideal deve ser atingido progressivamente, e durante esse intervalo de abordagem gradual tenho a oportunidade de me abandonar ao prazer da violência. O ideal é o oposto do que sou, e todo oposto contém em si a semente de seu próprio oposto. O ideal é uma projeção do pensamento, que é memória, e a prática do ideal é uma atividade autocentrada, tal como a violência. Ao longo de séculos foi dito – e nós continuamos a repetir – que o tempo é necessário para nos livrarmos da violência; mas isso é um mero hábito, e não há sabedoria por trás disso. Ainda somos violentos. Portanto, o tempo não é o fator da liberdade; o ideal da não violência não liberta a mente da violência. A violência não poderia simplesmente cessar, sem ser amanhã, ou daqui a dez anos?

“Você quer dizer instantaneamente?”

Quando usa essa palavra, você não esta pensando ou sentindo ainda em termos de tempo? A violência não pode apenas cessar? E não em determinado momento?

“Será possível uma coisa dessas?”

Só com a compreensão do tempo. Estamos acostumados com ideais, temos o hábito de resistir, reprimir, sublimar e substituir tudo que envolve esforço e luta ao longo do tempo. A mente pensa em hábitos; é condicionada ao gradualismo, e passou a considerar o tempo como meio de alcançar a libertação da violência. Com o entendimento da falsidade de todo esse processo, a verdade da violência é vista, e este é o fator libertador, e não o ideal ou o tempo.

“Eu acho que compreendo o que você está dizendo, ou melhor, sinto a verdade disso. Mas não é muito difícil libertar a mente do hábito?”

É difícil quando você combate o hábito. Por exemplo, o hábito de fumar. Combater esse hábito é dar-lhe vida. O hábito é mecânico, e resistir só alimenta a máquina, dá mais poder a ela. Mas se você considera a mente e observa a formação de seus hábitos, então, como o entendimento do problema maior, o menor se torna insignificante e se desfaz.

“Por que a mente forma hábitos?”

Esteja cônscio dos mecanismos de sua própria mente e você descobrirá por quê. A mente forma hábitos a fim de estar segura, certa, imperturbável, a fim de ter continuidade. Memória é hábito. Falar um determinado idioma é um processo de memória, hábito; mas o que se expressa na linguagem, uma série de pensamentos e sentimentos, também é habitual, se baseia naquilo que lhe foi dito, na tradição e assim por diante. A mente se move do conhecido para o conhecido, de uma certeza para outra; por isso, nunca há liberdade do conhecido.

Isso nos traz de volta ao ponto em que começamos. Presume-se que o tempo é necessário para a percepção do Supremo. Mas o que o pensamento pode conceber ainda está no campo do tempo. A mente não tem a menor possibilidade de formular o desconhecido. Ela pode especular a respeito disso, mas sua especulação não é o desconhecido.

“Então, o problema se coloca; como podemos perceber o Supremo?”

Não por qualquer método. Praticar um método é cultivar outro conjunto de memórias, vinculado ao tempo; mas a percepção só é possível quando a mente já não está nas amarras do tempo.

“A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas? Um agente externo não é necessário?”

Quando você busca um agente externo, está de volta a seu condicionamento, em suas conclusões. Nossa única preocupação é com a pergunta: “A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas?” Todas as outras questões são irrelevantes e impedem que a mente aborde esta pergunta. Não há atenção quando há motivo, quando há a pressão para alcançar, para perceber; ou seja, quando a mente está buscando um resultado, um fim. A mente descobrirá a solução desse problema, não através de argumentos, opiniões convicções ou crenças, mas através da própria intensidade da questão.
 

(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012