sexta-feira, 31 de maio de 2013

Palavras

Jiddu Krishnamurti (*)

ELE HAVIA LIDO MUITÍSSIMO; e embora fosse pobre, considerava-se rico em conhecimento, o que lhe dava alguma felicidade. Passava muitas horas com seus livros e grande parte do tempo sozinho. Sua mulher havia morrido e seus dois filhos estavam com alguns parentes; e ele estava bem contente de estar afastado da confusão de todos os relacionamentos, acrescentou. Era estranhamente auto-suficiente, independente e tranquilamente decidido. Percorrerá um longo caminho, disse, para entrar na questão da meditação e especialmente para considerar o uso de certos cânticos e frases, cuja repetição constante era extremamente útil para a pacificação da mente. Além disso, existia certa mágica nas próprias palavras: as palavras devem ser pronunciadas corretamente e cantadas da forma correta. Essas palavras foram transmitidas às gerações seguintes desde os tempos antigos; e a própria beleza das palavras, com sua cadência rítmica, produzia uma atmosfera útil à concentração. E sem demora começou a cantar. Ele tinha uma voz agradável e havia uma melodia nascida do amor das palavras e do seu significado; ele cantou com a facilidade que vem da longa prática e da devoção. No momento em que começou a cantar, desligou-se de tudo.
Do outro lado do campo veio o som de uma flauta; era tocada de modo hesitante, mas a sonoridade era clara e pura. O músico estava sentado à farta sombra de uma frondosa árvore, e além dele, ao longe, estavam as montanhas. As montanhas silenciosas, o cântico e o som da flauta pareciam encontrar-se e sumir, para começar novamente. Os papagaios barulhentos passavam rapidamente; e mais uma vez as notas da flauta e o cântico grave e poderoso. Era de manhã cedo e o sol surgia por cima das árvores. As pessoas iam de seus povoados para a cidade, conversando e rindo. A flauta e o  cântico eram insistentes, e algumas pessoas pararam para ouvir; sentaram-se na estradinha e foram capturadas pela beleza do cântico e pela glória da manhã, que não foi absolutamente perturbada pelo apito de um trem distante; pelo contrário, todos os sons pareciam mesclar-se  e encher a terra. Mesmo o alto crocitar de um corvo não destoou.
Como somos estranhamente capturados pelo som das palavras e como as próprias palavras se tornaram importantes para nós: nação, Deus, sacerdote, democracia, revolução. Vivemos de palavras e nos deliciamos com as sensações que elas produzem; e são essas sensações que se tornaram tão importantes. As palavras são prazerosas porque seus sons despertam novamente sensações esquecidas; e sua satisfação é maior quando as palavras são substituídas pelo real, pelo que é. Tentamos preencher nosso vazio interior com palavras  com sons, com barulhos, com atividades; a música e o cântico são uma fuga feliz de nós mesmos, de nossa insignificância e de nosso tédio. As palavras enchem nossas bibliotecas; e como falamos incessantemente! Dificilmente ousamos estar sem um livro, desocupados, sozinhos. Quando estamos sós, a mente está inquieta, vagando por toda parte, preocupando-se, recordando, lutando; assim, não existe nunca a disposição de estar só, a mente está tranqüila.
Obviamente, a mente pode ser aquietada pela repetição de uma palavra, de um cântico, de uma prece. A mente pode ser narcotizada, anestesiada; pode ser anestesiada de modo agradável ou violento, e durante esse sono podem haver sonhos. Mas a mente que é silenciada por disciplina, por ritual, por repetição, jamais pode ser alerta, sensível e livre. Esse açoite da mente, sutil ou grosseiro, não é meditação. É agradável cantar e ouvir alguém que possa fazê-lo bem; mas a sensação vive apenas de mais sensações, e a sensação leva à ilusão. A maioria de nós gosta de viver de ilusões, há prazer em encontrar ilusões mais profundas e mais amplas; mas é o medo de perder nossas ilusões que nos faz negar ou encobrir o real, o verdadeiro. Não é que sejamos incapazes de entender o real; o que nos faz sentir medo é que rejeitamos o real e nos prendemos à ilusão. Ficar cada vez mais profundamente preso na ilusão não é meditação, nem é enfeitar a cela que nos prende. A percepção, desprovida de escolha, dos mecanismos da mente, que é a criadora da ilusão, e o início da meditação.
É estranha a facilidade com que encontramos substitutos para a coisa real, e como ficamos contentes com eles. O símbolo – a palavra, a imagem – torna-se totalmente importante, e em torno dele construímos a estrutura do auto-engano, usando o conhecimento para fortalecê-lo; e assim a experiência torna-se um obstáculo ao entendimento do real. Nomeamos, não apenas para comunicar, mas para reforçar a experiência; esse reforço da experiência é a consciência de si mesmo e, uma vez pego nesse processo, é extremamente difícil abandoná-lo ou seja, ir além da consciência de si mesmo. É essencial morrer para a experiência de ontem e para as sensações de hoje, do contrário haverá repetição, e a repetição de um ato, de um ritual, de uma palavra, é inútil. Na repetição não pode haver renovação. A morte da experiência é criação.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1/Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007