Jiddu
Krishnamurti (*)
ELE HAVIA LIDO MUITÍSSIMO;
e embora fosse pobre, considerava-se rico em conhecimento, o que lhe dava
alguma felicidade. Passava muitas horas com seus livros e grande parte do tempo
sozinho. Sua mulher havia morrido e seus dois filhos estavam com alguns
parentes; e ele estava bem contente de estar afastado da confusão de todos os
relacionamentos, acrescentou. Era estranhamente auto-suficiente, independente e
tranquilamente decidido. Percorrerá um longo caminho, disse, para entrar na
questão da meditação e especialmente para considerar o uso de certos cânticos e
frases, cuja repetição constante era extremamente útil para a pacificação da
mente. Além disso, existia certa mágica nas próprias palavras: as palavras
devem ser pronunciadas corretamente e cantadas da forma correta. Essas palavras
foram transmitidas às gerações seguintes desde os tempos antigos; e a própria
beleza das palavras, com sua cadência rítmica, produzia uma atmosfera útil à
concentração. E sem demora começou a cantar. Ele tinha uma voz agradável e
havia uma melodia nascida do amor das palavras e do seu significado; ele cantou
com a facilidade que vem da longa prática e da devoção. No momento em que
começou a cantar, desligou-se de tudo.
Do outro lado do campo
veio o som de uma flauta; era tocada de modo hesitante, mas a sonoridade era
clara e pura. O músico estava sentado à farta sombra de uma frondosa árvore, e
além dele, ao longe, estavam as montanhas. As montanhas silenciosas, o cântico
e o som da flauta pareciam encontrar-se e sumir, para começar novamente. Os
papagaios barulhentos passavam rapidamente; e mais uma vez as notas da flauta e
o cântico grave e poderoso. Era de manhã cedo e o sol surgia por cima das
árvores. As pessoas iam de seus povoados para a cidade, conversando e rindo. A
flauta e o cântico eram insistentes, e
algumas pessoas pararam para ouvir; sentaram-se na estradinha e foram
capturadas pela beleza do cântico e pela glória da manhã, que não foi
absolutamente perturbada pelo apito de um trem distante; pelo contrário, todos
os sons pareciam mesclar-se e encher a
terra. Mesmo o alto crocitar de um corvo não destoou.
Como somos
estranhamente capturados pelo som das palavras e como as próprias palavras se
tornaram importantes para nós: nação, Deus, sacerdote, democracia, revolução.
Vivemos de palavras e nos deliciamos com as sensações que elas produzem; e são
essas sensações que se tornaram tão importantes. As palavras são prazerosas
porque seus sons despertam novamente sensações esquecidas; e sua satisfação é
maior quando as palavras são substituídas pelo real, pelo que é. Tentamos preencher nosso vazio
interior com palavras com sons, com
barulhos, com atividades; a música e o cântico são uma fuga feliz de nós
mesmos, de nossa insignificância e de nosso tédio. As palavras enchem nossas bibliotecas;
e como falamos incessantemente! Dificilmente ousamos estar sem um livro,
desocupados, sozinhos. Quando estamos sós, a mente está inquieta, vagando por
toda parte, preocupando-se, recordando, lutando; assim, não existe nunca a
disposição de estar só, a mente está tranqüila.
Obviamente, a mente
pode ser aquietada pela repetição de uma palavra, de um cântico, de uma prece.
A mente pode ser narcotizada, anestesiada; pode ser anestesiada de modo
agradável ou violento, e durante esse sono podem haver sonhos. Mas a mente que
é silenciada por disciplina, por ritual, por repetição, jamais pode ser alerta,
sensível e livre. Esse açoite da mente, sutil ou grosseiro, não é meditação. É
agradável cantar e ouvir alguém que possa fazê-lo bem; mas a sensação vive
apenas de mais sensações, e a sensação leva à ilusão. A maioria de nós gosta de
viver de ilusões, há prazer em encontrar ilusões mais profundas e mais amplas;
mas é o medo de perder nossas ilusões que nos faz negar ou encobrir o real, o
verdadeiro. Não é que sejamos incapazes de entender o real; o que nos faz
sentir medo é que rejeitamos o real e nos prendemos à ilusão. Ficar cada vez
mais profundamente preso na ilusão não é meditação, nem é enfeitar a cela que
nos prende. A percepção, desprovida de escolha, dos mecanismos da mente, que é
a criadora da ilusão, e o início da meditação.
É estranha a
facilidade com que encontramos substitutos para a coisa real, e como ficamos
contentes com eles. O símbolo – a palavra, a imagem – torna-se totalmente
importante, e em torno dele construímos a estrutura do auto-engano, usando o
conhecimento para fortalecê-lo; e assim a experiência torna-se um obstáculo ao
entendimento do real. Nomeamos, não apenas para comunicar, mas para reforçar a
experiência; esse reforço da experiência é a consciência de si mesmo e, uma vez
pego nesse processo, é extremamente difícil abandoná-lo ou seja, ir além da
consciência de si mesmo. É essencial morrer para a experiência de ontem e para
as sensações de hoje, do contrário haverá repetição, e a repetição de um ato, de
um ritual, de uma palavra, é inútil. Na repetição não pode haver renovação. A
morte da experiência é criação.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos –
Volume 1/Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007