domingo, 5 de agosto de 2012

Tempo, hábito e ideais


Jiddu Krishnamurti (*)



CAÍRAM FORTES CHUVAS COM vários centímetros por dia durante mais de uma semana, e o rio estava muito cheio. Já transbordara de suas margens, e algumas aldeias foram alagadas. Os campos estavam debaixo d’água, e o gado teve de ser transferido para um terreno mais alto. Alguns centímetros mais e o rio cobriria a ponte, e, então, haveria verdadeiros problemas; mas quando estava prestes a alcançar o ponto perigoso, as chuvas pararam e o rio começou a baixar. Alguns macacos que haviam se refugiado nas árvores estavam isolados, e teriam de permanecer lá por um ou dois dias.

No início de certa manhã, quando as águas haviam baixado, partimos pelo campo aberto, que era plano quase até o pé das montanhas. A estrada passava por uma aldeia após outra, e por fazendas equipadas com máquinas modernas. Era primavera, e ao longo da estrada as árvores estavam em flor. O carro avançara suavemente. Havia o ronronar do motor, bem como o murmúrio da borracha dos pneus na estrada; e, ainda assim, havia um extraordinário silêncio em todos os lugares, entre as árvores, no rio, e sobre a terra plantada.  

A mente fica em silêncio apenas com a abundância de energia, quando há aquela atenção em que cessa toda contradição, toda pulsão do desejo em diferentes direções. O esforço do desejo de estar em silêncio não gera silêncio. O silêncio não deve ser adquirido através de qualquer forma de coerção, não é a recompensa da repressão ou mesmo da sublimação. Mas a mente que não está em silêncio jamais é livre. E só para a mente silenciosa é que os céus se abrem. O êxtase que a mente procura não é encontrado através de busca, nem reside na fé. Só a mente silenciosa pode receber aquela benção que não é da Igreja nem da crença. Para a mente estar em silêncio, todos os seus cantos contraditórios devem se unir e se fundir na chama da compreensão. A mente silenciosa não é uma mente reflexiva. Para refletir, deve haver o observador e o observado, o experimentador carregado de passado. Na mente silenciosa, não há centro a partir do qual se transformar, ser ou pensar. Todo desejo é contradição, pois cada centro de desejo se opõe a outro centro. O silêncio da mente total é meditação.



Era um homem bastante jovem, com uma cabeça grande, olhos claros e mãos de aparência habilidosa. Falava com facilidade e autoconfiança, e trouxera a esposa junto, uma moça digna que, evidentemente, não diria nada. Ela, provavelmente, viera sob a persuasão dele, e preferia ouvir.

“Sempre me interessei por questões religiosas”, disse ele, “e logo no início da manhã, antes que as crianças acordem e o burburinho da casa comece, passo um tempo considerável praticando a meditação. Acho-a muito útil para ganhar controle da mente e cultivar certas virtudes necessárias. Ouvi seu discurso sobre meditação há alguns dias, mas como sou novato em seus ensinamentos, não fui capaz de entender bem. Mas não vim para falar sobre isso. Vim para falar do tempo – o tempo como um meio para a percepção do Supremo. Até onde vejo, o tempo é necessário para o cultivo daquelas qualidades e sensibilidades da mente essenciais para que a iluminação seja alcançada. É assim, não é?”

Se começar por presumir certas coisas, será possível encontrar a verdade da questão? As conclusões não impedem a clareza de pensamento?

“Sempre dei como certo que o tempo é necessário para atingir a libertação. Isto é o que a maioria dos livros religiosos afirma, e eu nunca questionei. Creio que há indivíduos aqui e ali que alcançaram esse estado de êxtase instantaneamente; mas são poucos, pouquíssimos. O restante de nós deve ter um tempo, curto ou longo, no qual preparar a mente para receber aquele êxtase. Mas compreendo bem o que você quer dizer quando afirma que, para pensar com clareza, a mente deve estar livre de conclusões.”

E é extremamente árduo estar livre delas, não é?

Pois bem, o que entendemos por tempo? Há o tempo do relógio, o tempo como passado, presente e futuro. Há tempo como memória, tempo como distância percorrida daqui até ali e há tempo como resultado, o processo de se tornar algo. Tudo isso é o que entendemos por tempo. E é possível para a mente estar livre do tempo, ir além de suas limitações? Comecemos com o tempo cronológico. É possível estar livre do tempo no sentido real, cronológico?

“Não, se queremos pegar um trem! Para estarmos saudavelmente ativos neste mundo, e para manter algum tipo de ordem, o tempo cronológico é essencial.”

E, então, há tempo como memória, hábito, tradição; e o tempo como esforço de alcançar, de realizar, de se tornar. Obviamente, é preciso tempo para aprender uma profissão, ou adquirir uma habilidade. Mas o tempo também é necessário para a percepção do Supremo?”

“A mim, parece que sim.”

O que é que está alcançando, percebendo?

“Suponho que é o que você chama de ‘eu’.”

Que é um conjunto de memórias e associações, tanto conscientes como inconscientes. É a entidade que goza e sofre, que pratica virtudes, que adquire conhecimento, que acumula experiência, a entidade que conheceu realização e frustração, e é quem pensa que existe a alma, o Atman, o Eu Superior. Essa entidade esse “mim”, que é memória, pensa que alcançará o Supremo ao longo do tempo. Mas seu “Supremo” é algo que ela formulou e, portanto, está também no domínio do tempo, não é?

“Da maneira como você expõe, parece que aquele que faz o esforço, e o objetivo pelo qual ele se esforça, estão igualmente na esfera do tempo.”

Através do tempo você só pode atingir o que o tempo criou. O pensamento é a reação da memória, e o pensamento só pode perceber aquilo que o pensamento concebeu.

“Você está dizendo, senhor, que a mente deve estar livre de memória e do desejo de alcançar, de perceber?”

Logo chegaremos a esse ponto. Se possível, abordemos o problema de modo diferente. Tomemos a violência, por exemplo, e os ideais de não violência. Dizem que o ideal de não violência dissolve a violência. Mas será mesmo? Digamos que sou violento, e meu ideal é ser não violento. Há um hiato, uma lacuna entre o que realmente sou e aquilo que eu deveria ser, o ideal. Cobrir essa distância intermediária leva tempo; o ideal deve ser atingido progressivamente, e durante esse intervalo de abordagem gradual tenho a oportunidade de me abandonar ao prazer da violência. O ideal é o oposto do que sou, e todo oposto contém em si a semente de seu próprio oposto. O ideal é uma projeção do pensamento, que é memória, e a prática do ideal é uma atividade autocentrada, tal como a violência. Ao longo de séculos foi dito – e nós continuamos a repetir – que o tempo é necessário para nos livrarmos da violência; mas isso é um mero hábito, e não há sabedoria por trás disso. Ainda somos violentos. Portanto, o tempo não é o fator da liberdade; o ideal da não violência não liberta a mente da violência. A violência não poderia simplesmente cessar, sem ser amanhã, ou daqui a dez anos?

“Você quer dizer instantaneamente?”

Quando usa essa palavra, você não esta pensando ou sentindo ainda em termos de tempo? A violência não pode apenas cessar? E não em determinado momento?

“Será possível uma coisa dessas?”

Só com a compreensão do tempo. Estamos acostumados com ideais, temos o hábito de resistir, reprimir, sublimar e substituir tudo que envolve esforço e luta ao longo do tempo. A mente pensa em hábitos; é condicionada ao gradualismo, e passou a considerar o tempo como meio de alcançar a libertação da violência. Com o entendimento da falsidade de todo esse processo, a verdade da violência é vista, e este é o fator libertador, e não o ideal ou o tempo.

“Eu acho que compreendo o que você está dizendo, ou melhor, sinto a verdade disso. Mas não é muito difícil libertar a mente do hábito?”

É difícil quando você combate o hábito. Por exemplo, o hábito de fumar. Combater esse hábito é dar-lhe vida. O hábito é mecânico, e resistir só alimenta a máquina, dá mais poder a ela. Mas se você considera a mente e observa a formação de seus hábitos, então, como o entendimento do problema maior, o menor se torna insignificante e se desfaz.

“Por que a mente forma hábitos?”

Esteja cônscio dos mecanismos de sua própria mente e você descobrirá por quê. A mente forma hábitos a fim de estar segura, certa, imperturbável, a fim de ter continuidade. Memória é hábito. Falar um determinado idioma é um processo de memória, hábito; mas o que se expressa na linguagem, uma série de pensamentos e sentimentos, também é habitual, se baseia naquilo que lhe foi dito, na tradição e assim por diante. A mente se move do conhecido para o conhecido, de uma certeza para outra; por isso, nunca há liberdade do conhecido.

Isso nos traz de volta ao ponto em que começamos. Presume-se que o tempo é necessário para a percepção do Supremo. Mas o que o pensamento pode conceber ainda está no campo do tempo. A mente não tem a menor possibilidade de formular o desconhecido. Ela pode especular a respeito disso, mas sua especulação não é o desconhecido.

“Então, o problema se coloca; como podemos perceber o Supremo?”

Não por qualquer método. Praticar um método é cultivar outro conjunto de memórias, vinculado ao tempo; mas a percepção só é possível quando a mente já não está nas amarras do tempo.

“A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas? Um agente externo não é necessário?”

Quando você busca um agente externo, está de volta a seu condicionamento, em suas conclusões. Nossa única preocupação é com a pergunta: “A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas?” Todas as outras questões são irrelevantes e impedem que a mente aborde esta pergunta. Não há atenção quando há motivo, quando há a pressão para alcançar, para perceber; ou seja, quando a mente está buscando um resultado, um fim. A mente descobrirá a solução desse problema, não através de argumentos, opiniões convicções ou crenças, mas através da própria intensidade da questão.
 

(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012

6 comentários:

  1. Bom dia Roberto,

    Interessante a essência do texto e há muita coisas nas quais consinto com JK, no entanto seu conceito sobre o conhecimento, o tempo, o hábito e os ideais, é um tanto nebuloso, a meu entender contraditório. Observe que o próprio JK suscita minha compreensão, que entendi a respeito da leitura deste texto. Ele próprio para conceber suas palestra, textos, ou entendimentos, teve que se respaldar em algo, uma referência qualquer. Entendo que a não ser o "divino", é por isto digo "divino", aquele que é capaz de si criar do nada, utilizando dos preceitos que regem a origem do "divino", cujos quais minha mente não é apta a abarcar, quisera eu ter cosmo-consciência, para todo o restante do universo ainda não consigo admitir possibilidade de auto-gênese, a matéria não se cria espontaneamente, assim como a vida que é rara, exige uma série de condições para eclodir, penso que assim também é o conhecimento, gradual, temporal, sucessivo. A convicção de que algo possa ser obtido através da intensidade da dúvida, é plausível, desde que se tenha algum juízo de valor para julgar a procedência do evento ou coisa observada, caso contrário enxergo o vazio da ignorância, o mesmo que permeia a maior parte da humanidade, vítima do miopia mental, da ignorância, da incapacidade e pensar, regida pelo instinto e pelos "hábitos", basicamente.

    Consinto com a necessidade do silêncio, tanto que escrevi no texto "O Vagabundo" o trecho: "Retirar-se para refletir ouvindo apenas os sussurros da mente...", para que possa obter a partir de si mesmo alguma percepção, aparentemente "imparcial", tentando ser consciente, para sucumbir a influência dos vícios e das crenças que nos atordoam.

    Grande abraço,

    Luiz Otávio

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  2. Roberto,

    É difícil se concentrar no ambiente de trabalho, por favor leia na última linha do post:

    "...para não sucumbir a influência dos vícios e das crenças que nos atordoam."

    Abraço,

    Luiz Otávio

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    1. Bons dias Luiz!
      É caro compartilhador, também para mim, as “cavoucadas” de JK são em várias ocasiões uma terra nevoenta. Em algumas das suas exposições tenho uma compreensão mental do assunto; mas essa compreensão mental, por vezes, não se transforma em ação; ou seja, não se torna uma realidade em minha vida. Mesmo um pouco frustrado quando não consigo transformar as compreensões em ação, ainda assim, fico com a sensação que a manifestação dele é a única saída para o fato em exposição.
      Longe de mim a pretensão de interpretar o que JK manifesta. Penso que a significação das suas manifestações só pode ser feita subjetivamente. Isto é, a compreensão é particular. Isso não impede de trazer a superfície nossa compreensão de outras cavoucadas dele, para colaborar com o assunto em pauta. Assim, por exemplo, quando ele fala que devemos abandonar todo o “conhecimento” para a possibilidade de nos depararmos com a verdade, Deus, ou o nome que quisermos dar a esse desconhecido; penso que não está implícito o abandono de nenhum conhecimento objetivo, que pode ser capturado pelo intelecto. O que devemos abandonar é a descrição de qualquer ideia pessoal ou de terceiro relativo ao assunto pautado, bem como projeções do inconsciente sobre o mesmo.
      Quanto à questão referente ao “tempo” ou “o vir a ser psicológico” como JK gosta de referir, consinto quando ele manifesta que as condutas a serem abandonadas o são de imediato e não com o tempo (paulatinamente). Essa compreensão também acorda com o axioma logosófico que diz: “Quem quiser chegar a ser o que não é, deverá principiar por não ser o que é”.
      Em fim, pensando que as cavoucadas sobre esse assunto talvez possibilitem depararmo-nos com o desconhecido; também, penso que este desconhecido transcende a nossa consciência, portanto prescinde de qualquer conhecimento. Mas, essa é uma compreensão do momento. De passagem por um momento logosófico de ser, digo como o Raumsol: “Sejamos como os rios, que renovam constantemente as suas águas”.
      Abração,
      Roberto Lira

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  3. Boa noite Roberto,

    Muito boas suas considerações, intercâmbiar é sempre bom, penso eu.

    Com relação a quebra de paradigmas, consinto com suas observações e com o axioma do Pecotche, curiosamente hoje estava conversando com uma colega de trabalho e falávamos sobre vícios, fazendo uma analogia com o tema, concordo que deva haver ruptura, tem que ser abrupto, certas coisas nesta vida não tem como ser paulatinas, assim como você e eu trabalhamos nossos pensamentos para tomar uma decisão balizada, para não incorrer no arrependimento. Decidir, palavrinha complexa essa, nos impõe uma boa dose de coragem e valentia, e sempre cobra um raciocínio criterioso antes de alcança-la, porque o contrário geralmente é desastroso.

    Já pensou na teimosia como qualidade, digo isso porque ela vai além a persistência. Mesmo quando o desconhecido transcende nossa consciência, não sou capaz de ignorar o conhecimento, em minha teimosia, penso, ele está lá, em algum lugar, tem que estar, e quando menos se espera, ele é assimilado, como tantas vezes já aconteceu na história humana.

    E vamos que vamos, nos renovando constantemente, concedendo-nos o direito de reinventar-se todo dia, para quem sabe, assimilar esses conhecimentos.

    Grande Abraço.

    Luiz Otávio

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    1. É ISSO LUIZ!

      E, como você diz, vamos que vamos nos renovar.

      Há quem julgue que o indíviduo que é conservador, permanente, estável, imutável, que tem uma opinião formada sobre tudo como alguém que deve ser valorizado. Eu prefiro ser, como já dizia o saudoso Raulzito, uma metamorfose amulante.

      Abração,

      Roberto Lira

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