segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sensação e felicidade


Jiddu Krishnamurti (*)

ESTÁVAMOS BEM ALTO sobre o oceano verde, e o barulho das hélices batendo no ar e o ruído do motor dificultavam a conversa. Além disso, havia alguns universitários dirigindo-se a um encontro de atletismo na ilha; um deles tinha um banjo, e o tocou e cantou por muitas horas. Atiçou os outros e todos se uniram para cantar. O rapaz com o banjo tinha uma boa voz e as músicas eram americanas, canções populares, regionais ou de jazz. Faziam tudo muito bem, exatamente como nos discos. Formavam um grupo estranho, preocupados apenas com o presente; eles não tinham um único pensamento em nada além do divertimento imediato. O amanhã continha todos os problemas: emprego, casamento, velhice e morte. Mas aqui, bem alto sobre o mar, havia músicas americanas e as revistas em quadrinhos. Eles ignoraram o relâmpago entre as nuvens escuras e não viram a curva da terra enquanto ela acompanha o mar, nem a cidade distante ao sol.
A ilha estava quase embaixo de nós agora. Era verde e reluzente, recém-lavada pelas chuvas. Como tudo era limpo e arrumado daquela altura! O morro mais alto era achatado e as ondas brancas não tinha movimento. Um barco pesqueiro marrom com velas se apressava antes da tempestade; ele alcançaria a segurança, pois o porto estava à vista. O rio sinuoso descia até o mar e a terra marrom-dourada. Naquela altura avistava-se o que estava acontecendo em ambos os lados do rio, e o passado e o futuro se encontravam. O futuro não estava oculto, embora estivesse depois da curva. Naquela altura não havia o passado nem o futuro; o espaço curvo não escondia nem o tempo de semear nem o tempo de colher.
O homem na outra poltrona começou a falar das dificuldades da vida. Ele reclamava do emprego, das viagens constantes, da falta de consideração de sua família e da futilidade da política moderna. Dirigia-se a algum lugar distante e estava bastante triste em deixar seu lar. Enquanto falava, foi ficando cada vez mais sério, cada vez mais preocupado com o mundo e especialmente consigo mesmo e com a família.
“Eu gostaria de me afastar de tudo isso e ir para algum lugar tranquilo, trabalhar um pouco e ser feliz. Não acho que tenha sido feliz em toda a minha vida, e não sei o que isso quer dizer. Vivemos, procriamos, trabalhamos e morremos, como qualquer outro animal. Perdi todo o entusiasmo, exceto por fazer dinheiro, e isso também está se tornando bastante entediante. Eu sou razoavelmente bom em meu trabalho e ganho um bom salário, mas não tenho a menor ideia do que tudo isso significa. Gostaria de ser feliz, o que você acha que posso fazer a respeito?”
Esse é um assunto complexo de entender, e dificilmente esse é o lugar para uma conversa séria.
“Temo não ter uma hora melhor; no momento em que pousarmos, precisarei decolar novamente. Posso não parecer sério, mas há pontos de seriedade em mim; o único problema é que eles nunca parecem se unir. Sou realmente sério interiormente. Meu pai e meus parentes mais velhos eram famosos pela seriedade, mas as atuais condições econômicas não permitem que alguém seja completamente sério. Tenho me afastado de tudo, mas gostaria de voltar a isso e esquecer toda a estupidez. Suponho que seja fraco e que reclamo das circunstâncias; mas, mesmo assim, gostaria de ser realmente feliz.”
Sensação é uma coisa e felicidade é outra. A sensação está sempre buscando mais sensação, sempre em círculos cada vez mais amplos. Não há fim para os prazeres da sensação; eles se multiplicam, mas sempre existe insatisfação em sua gratificação; sempre há o desejo por mais, e este é interminável. Sensação e insatisfação são inseparáveis, pois o desejo por mais as une. Sensação é o desejo por mais e também o desejo por menos. No próprio ato de satisfazer uma sensação, nasce a demanda por mais. O mais está sempre no futuro; é a insatisfação permanente com o que foi. Há conflito entre o que foi e o que será. Sensação é sempre insatisfação. Pode-se vestir a sensação em trajes religiosos, mas ela ainda será o que é: uma coisa da mente e uma fonte de conflito e apreensão. Sensações físicas estão sempre implorando por mais; e quando são frustradas, existe raiva, ciúme, ódio. Há prazer no ódio, e o ciúme é gratificante; quando alguém é frustrado, a satisfação é encontrada no próprio antagonismo que a frustração criou.
A sensação é sempre uma reação que vaga de uma reação para outra. Quem vaga é a mente; a mente é a sensação. A mente é o depósito das sensações, agradáveis ou desagradáveis, e toda experiência é reação. A mente é memória, que afinal de contas é reação. As reações ou sensações jamais podem ser satisfeitas; a reação jamais pode estar contente. A reação é sempre negação, e o que não existe jamais poderá ser. A sensação não conhece contentamento. A sensação e a reação devem sempre gerar conflito, e o próprio conflito é mais sensação. Confusão produz confusão. A atividade da mente, em todos os seus diferentes níveis, é ajudar a expandir a sensação; e quando essa expansão é negada, ela encontra gratificação na contração. A sensação, a reação, são o conflito dos opostos; e nesse conflito de resistência e aceitação, cedendo e rejeitando, existe a satisfação, que sempre busca mais satisfação.
A mente jamais pode encontrar felicidade. Felicidade não é uma coisa a ser buscada e encontrada, como a sensação. A sensação pode ser encontrada repetidamente, pois está sempre sendo perdida; mas a felicidade não pode se encontrada. Felicidade lembrada é somente uma sensação, uma reação do presente ou contra ele. O que acaba não é felicidade; a experiência da felicidade que termina é sensação, pois recordação é o passado e o passado é sensação Felicidade não é sensação.
Você já percebeu estar feliz?
“Claro que sim, graças a Deus, de outra forma eu não saberia o que é ser feliz.”
Certamente, aquilo que percebia era a sensação de uma experiência que você chama de felicidade; mas isso não é felicidade. O que você conhece é o passado, não o presente; e o passado é sensação, reação, memória. Você lembra que era feliz; e pode o passado dizer o que é felicidade? Ele pode lembrar mas não pode ser. Reconhecimento não é felicidade; saber o que é ser feliz não é felicidade. O reconhecimento é a reação da memória; e pode a mente, o complexo de memórias, de experiências, ser feliz? O próprio reconhecimento impede a experienciação.
Quando você percebe que é feliz, há felicidade? Quando há felicidade, você está atento a ela? A conscientização só vem com conflito, o conflito da recordação do “mais”. A felicidade não é a recordação do “mais”. Onde há conflito, a felicidade não está presente. Conflito é onde a mente está. O pensamento, em todos os níveis, é a reação da memória, e assim o pensamento, invariavelmente, produz conflito. Pensamento é sensação e sensação não é felicidade. As sensações sempre buscam gratificações. A finalidade é a sensação, mas a felicidade não é finalidade; ela não pode ser buscada.
“Mas como as sensações podem acabar?”
Acabar com as sensações é convidar a morte. Mortificação é só uma outra forma de sensação. Na mortificação, física ou psicológica, a sensibilidade é destruída, mas não a sensação. O pensamento que mortifica a si mesmo estão só em busca de outras sensações, pois o próprio pensamento é sensação.  Ele jamais pode pôr fim à sensação; pode ter sensações diferentes, em outros níveis, mas não encontra fim para elas. Destruir a sensação é estar insensível, morto; não ver, não cheirar, não tocar é estar morto, que é isolamento. Nosso problema é inteiramente diferente, não é? O pensamento jamais pode trazer felicidade; ele pode somente lembrar sensações, pois o pensamento é sensação. Ele não pode cultivar, produzir ou avançar em direção à felicidade. O pensamento só pode ir em direção àquilo que conhece, mas o conhecido não é felicidade; o conhecido é sensação. Faça o que fizer, o pensamento não pode ser feliz ou buscar felicidade. O pensamento só pode estar atento a sua própria estrutura, a seu próprio movimento. Quando o pensamento se esforça para dar um fim a si mesmo, está somente buscando ser bem-sucedido, alcançar uma meta, um fim que será mais gratificante. O “mais” é conhecimento, mas não felicidade. O pensamento deve estar atento a seus próprios mecanismos, a seus próprios enganos astutos. Ao estar atenta a si mesmo, sem qualquer desejo de ser ou não ser, a mente chega a um estado de inação. Inação não é morte, é uma vigilância passiva na qual o pensamento está totalmente inativo. É o estado mais elevado de sensibilidade. Quando a mente está completamente inativa, em todos os seus níveis, só então há ação. Todas as atividades da mente são meras sensações, reação a estímulos, a influências, e portanto não são absolutamente ações. Quando a mente está sem atividade, há ação; essa ação é sem causa, e somente aí existe a felicidade perfeita.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007


Um comentário:

  1. Subjetivo...não é fácil de constatar o que seja realmente a felicidade. Esse estado de inação mental e tão complexo que se torna quase quimérico. Já estudei sobre o "nirvana" ou encontro com a divindade mas isto é diferente.É corpóreo , intrafísico, penso que talvez pudesse alcançá-lo através da ativação dos chackras em uma condição de repouso. No estado hipnagógico podemos experimentar algumas experiências interessantes, mas desta natureza ainda não tentei, e se o fiz, foi sem querer.

    Abraços,

    Luiz Otávio

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