segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O indivíduo e a sociedade


Jiddu Krishnamurti (*)

 

CAMINHÁVAMOS POR UMA RUA movimentada. As calçadas estavam apinhadas de pessoas e o cheiro dos canos de descarga dos carros e ônibus enchiam nossas narinas. As lojas exibiam muitos artigos caros e também de qualidade inferior. O céu trazia uma clara cor prateada e foi agradável entrar no parque ao deixarmos a rua de trânsito pesado. Adentramos mais no parque e nos sentamos.

Ele dizia que o Estado, com sua militarização e legislação, estava absorvendo o indivíduo quase em toda parte, e que a veneração ao Estado agora tomava o lugar da veneração a Deus. Na maioria dos países, o Estado estava penetrando na própria intimidade da vida de seu povo; o Estado dizia o que deviam ler e o que deviam pesar. O Estado espionava seus cidadãos, mantendo uma vigilância divina sobre eles, assumindo a função da Igreja. Era a nova religião. O homem costumava ser um escravo da Igreja, mas agora e um escravo do Estado. Antes era a Igreja, agora era o Estado a controlar sua educação; e nenhum dos dois estava interessado na libertação do homem.

Qual é o relacionamento do indivíduo com a sociedade? Obviamente, a sociedade existe para os indivíduos, não o contrário. A sociedade existe para a fruição do homem; existe para dar liberdade ao indivíduo, para que ele possa ter a oportunidade de despertar a inteligência superior. Essa inteligência não é o simples cultivar de uma técnica ou do conhecimento; é estar em contato com aquela realidade criativa que não pertence à mente superficial. A inteligência não é um resultado cumulativo, mas uma libertação da realização e do sucesso progressivos. A inteligência jamais é estática; ela não pode ser copiada e padronizada, e portanto não pode ser ensinada. A inteligência é descoberta na liberdade.

A vontade coletiva e sua ação, que é a sociedade, não oferece essa liberdade para o indivíduo; pois a sociedade, não sendo orgânica, é sempre estática. A sociedade é composta e estruturada para a conveniência do homem; ela não tem um mecanismo independente próprio. Os homens podem capturar a sociedade, guiá-la, moldá-la, tiranizá-la dependendo de seus estados psicológicos, mas a sociedade não é o senhor do homem. Ela pode influenciá-lo, mas o homem sempre a desmonta. Existe conflito entre o homem e a sociedade porque o homem está em conflito consigo mesmo; e o conflito é entre aquilo que é estático e aquilo que é dinâmico. A sociedade é a expressão exterior do homem. O conflito entre ele e a sociedade é o conflito que existe nele mesmo. Esse conflito, externo e interno, sempre existirá, até que a inteligência superior seja despertada.

Nós somos tanto entidades sociais quanto indivíduos; somos cidadãos assim como homens, tornando-nos isolados em dor e prazer. Para haver paz, temos de entender o relacionamento correto entre o homem e o cidadão. Claro, o Estado preferiria que fôssemos unicamente cidadãos; mas essa é a estupidez dos governos. Nós mesmos gostaríamos de entregar o homem ao cidadão; pois é mais fácil ser um cidadão do que um homem. Ser um bom cidadão é funcionar eficientemente dentro do padrão de uma dada sociedade. A eficiência e a conformidade são exigidas do cidadão, pois elas endurecem-no, tornam-no cruel; e depois ele é capaz de sacrificar o homem pelo cidadão. Um bom cidadão não é necessariamente um bom homem; mas um bom homem está fadado a ser um cidadão correto, não de alguma sociedade ou país em particular. Como ele é principalmente um bom homem, seus atos não serão anti-sociais, ele não estará contra um outro homem.  Ele viverá em cooperação com outros homens bons; ele não buscará autoridade, pois ele não tem autoridade; ele será capaz da eficiência, sem a sua crueldade. O cidadão tenta sacrificar o homem; mas o homem que está buscando a inteligência superior naturalmente evitará a estupidez do cidadão. Assim, o Estado será contra o homem bom, o homem de inteligência; mas esse homem estará livre de todos os governos e nações.

O homem inteligente produzirá uma boa sociedade; mas o bom cidadão não dará origem a sua sociedade em que o homem possa ter uma inteligência mais elevada. O conflito entre o cidadão e o homem será inevitável se o cidadão predominar; e qualquer sociedade que deliberadamente negligencie o homem estará condenada.  Só existe a conciliação entre o cidadão e o homem quando o processo psicológico do homem for entendido. O Estado e a sociedade atual não estão interessados no homem interior, mas somente no homem exterior, o cidadão. Ele pode rejeitar o homem interior, mas ele sempre supera o exterior, destruindo os planos astutamente tramados pelo cidadão. O Estado sacrifica o presente pelo futuro, sempre resguardando-se para este; ele considera o futuro completamente importante, não o presente. Mas para o homem inteligente o presente é da mais alta importância; o agora e não o amanhã. O que é só pode ser entendido com o desaparecimento do amanhã. O entendimento do que é efetua a transformação no presente imediato. É essa transformação que é de importância suprema e não como conciliar o cidadão com o homem. Quando essa transformação acontece, o conflito entre o homem e o cidadão cessa.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – volume 1 /Jiddu Krishnamurti.  Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Contentamento


Jiddu Krishnamurti (*)

O AVIÃO ESTAVA LOTADO. Voava a mais de seis mil metros sobre o Atlântico e havia um grosso tapete de nuvens abaixo dele. O céu acima era intensamente azul, o sol estava por trás de nós e voávamos em direção ao oeste. As crianças tinham brincado, correndo de um lado para o outro no corredor, e agora, cansadas, dormiam. Após a longa noite, todos os outros estavam acordados, fumando e bebendo. Um homem em frente contava a outro sobre seus negócios, e uma mulher no assento detrás descrevia em voz agradável as coisas que comprara e especulava sobre o valor do imposto que teria de pagar. Naquela altitude, o voo era tranquilo, não havia solavancos, apesar dos ventos fortes abaixo de nós. As asas do avião brilhavam na clara luz do sol e as hélices giravam suavemente, cortando o ar em uma velocidade fantástica; o vento estava por trás de nós e estávamos fazendo mais de 450km/h.

Dois homens do outro lado do estreito corredor conversavam bem alto, e era difícil não ouvir o que eles diziam. Eram homens grandes, e um tinha o rosto vermelho, castigado pelo clima. Ele explicava o comércio de matar baleias, como era arriscado, o lucro que havia nisso e como os mares eram assustadoramente bravios. Algumas baleias pesavam centenas de toneladas. As mães com filhotes não deviam ser mortas, nem eles tinham permissão de matar mais do que um certo número de baleias em um período específico. O abate desses grandes monstros parecia ser elaborado com muito conhecimento científico, cada grupo tendo um trabalho especial para fazer pelo qual era tecnicamente treinado. O cheiro do navio-fábrica era quase intolerável, mas as pessoas se acostumavam com isso, como se acostumavam com quase tudo. Mas havia uma grande quantidade de dinheiro nisso se tudo corresse bem. Ele começou a explicar a estranha fascinação de matar, mas naquele momento foram servidas as bebidas e o assunto mudou de rumo.

Os homens gostam de matar, quer seja um ao outro ou um cervo inofensivo, com olhos arregalados, no meio da floresta, ou um tigre que atacou o gado. Uma cobra é deliberadamente atropelada na estrada; uma armadilha é montada para um lobo ou um coiote ser apanhado. Pessoas bem vestidas, rindo, saem com suas preciosas armas e matam pássaros que pouco antes piavam uns para os outros. Um menino mata um gaio chilreante com sua espingarda de ar comprimido, e os velhos à sua volta nunca dizem uma palavra de lamento nem ralham com ele; pelo contrário, dizem que bom atirador ele é.  Matar pelo chamado esporte, por alimento, pelo seu país, pela paz – não há diferença em tudo isso. Justificativa não é a resposta. Só existe; não mate. No Ocidente, achamos que os animais existem para o bem de nossos estômagos, para o prazer de matar ou por suas peles. No Oriente, é ensinado há séculos e repetido por cada pai: não mate, seja piedoso, seja compassivo. Aqui, os animais não têm alma, então eles poder ser mortos com impunidade; lá, os animais têm alma, portanto reflita e deixe seu coração conhecer o amor. Comer animais, pássaros, é considerado aqui uma coisa natural, normal, sancionada pela Igreja e pelos anúncios; lá não é, e os sensatos, os religiosos, por tradição e cultura, nunca fazem. Mas isso também está rapidamente desmoronando. Aqui sempre matamos em nome de Deus e do país, e agora está em toda parte. O ato de matar está disseminado; quase da noite para o dia, as culturas antigas estão sendo varridas para o lado e a eficiência, crueldade e os meios de destruição estão sendo cuidadosamente alimentados e fortalecidos.

A paz não está com o político ou com o padre, nem está com o advogado ou com o policial. A paz é um estado de espírito quando existe amor.

Ele era um homem de uma pequena empresa, lutava mas conseguia viver com o que ganhava.

“Eu não vim falar sobre meu trabalho”, disse. “Ele me proporciona o que preciso, e como minhas necessidades são poucas, estou bem. Não sendo superambicioso, não estou no jogo da competição ferrenha. Um dia, quando estava passando, vi uma multidão embaixo das árvores e parei para ouvi-lo. Isso foi há uns dois anos, e o que você disse fez surgir uma inquietação em mim. Não sou culto, mas agora leio suas palestras e aqui estou. Eu costumava estar contente com minha vida, com meus pensamentos e com as poucas crenças que estavam pousadas levemente em minha mente. Mas, desde aquela manhã de domingo, quando vagava por este vale no meu carro e vim por acaso ouvir você, tenho estado descontente. Não é tanto com meu trabalho que estou descontente, mas o descontentamento tomou conta de todo o meu ser. Eu costumava sentir pena das pessoas que eram descontentes. Elas eram tão infelizes, nada as satisfazia – e agora entrei para essa categoria. Eu já estive satisfeito com minha vida, com meus amigos e com as coisas que estava fazendo, mas agora estou desconte e infeliz.”

Se posso perguntar, o que quer dizer com a palavra “descontente”?

“Antes daquela manhã de domingo, quando eu o ouvi, era um indivíduo contente, e suponho que um tanto aborrecido para outros; agora vejo como era estúpido e estou tentando ser inteligente e alerta a tudo à minha volta. Quero chegar a algo, chegar em algum lugar, e esse anseio naturalmente causa descontentamento. Eu costumava estar adormecido, se posso dizer assim, mas agora estou acordando.”

Você está acordando ou está tentando por a si mesmo para dormir novamente pelo desejo de se tornar algo? Você diz que estava dormindo, e que agora você está acordado; mas esse estado desperto o torna descontente, o que o desagrada, causa-lhe dor, e para fugir dessa dor você está tentando tornar-se algo, seguir um ideal e assim por diante. Essa imitação está pondo você para dormir novamente, não está?

“Mas não quero voltar a meu velho estado, quero realmente ficar acordado.”

Não é muito estranho como a mente se engana? A mente não gosta de ser perturbada, ela não gosta de ser sacudida de seus antigos padrões, seus hábitos confortáveis de pensamento e ação; sendo perturbada, ela procura meios e maneiras de estabelecer novos limites e pastos nos quais possa viver com segurança. É essa zona de segurança que a maioria de nós está buscando, e é o desejo de estar seguro, de estar protegido, que nos põe para dormir. As circunstâncias, uma palavra, um gesto, uma experiência, podem nos acordar, nos perturbar, mas queremos ser postos novamente para dormir. Isso está acontecendo com a maioria de nós o tempo todo, e não é um estado desperto. O que temos de entender são os meios pelo quais a mente se põe para dormir. É isso, não é?

“Mas deve haver um grande número de meios pelos quais a mente se põe para dormir. É possível conhecer e evitar todos eles?”

Vários podem ser indicados; mas isso não resolveria o problema, não é?

“Por que não?”

Simplesmente aprender os meios pelos quais a mente se põe para dormir é novamente encontrar um meio, talvez diferente, de não ser perturbado, de estar protegido. A coisa importante é manter-se acordado e não perguntar como se manter acordado; a busca do “como” é o anseio de estar seguro.

“Então, o que se pode fazer?”

Ficar com o descontentamento sem desejar pacificá-lo. É o desejo de não ser perturbado que precisa ser entendido. Esse desejo, que assume muitas formas, é o anseio de fugir do que é. Só quando esse anseio desaparece – mas não por meio de qualquer forma de compulsão consciente ou inconsciente é que a dor do descontentamento cessa. Comparar o que é com o que deveria ser traz dor. A cessação da comparação não é um estado de contentamento; e um estado de vigília, sem as atividades do ser.

“Tudo isso é muito novo para mim. Parece-me que você dá às palavras um significado diferente, mas a comunição só é possível quando nós damos o mesmo significado à mesma palavra ao mesmo tempo.”

Comunicação é relacionamento, não é?

“Você pula para significados mais amplos que sou capaz de entender. Eu preciso entrar mais profundamente nisso tudo e depois talvez entenda.”

 
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2009

 

 

 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A busca da verdade


Jiddu Krishnamurti (*)


ELE VIERA DE MUITO LONGE, viajando por vários milhares de quilômetros de barco e avião. Falava apenas seu próprio idioma e com maior dificuldade estava se ajustando a esse novo e perturbador ambiente. Não estava absolutamente acostumado a esse tipo de alimento e a esse clima; tendo nascido e sido criado em uma altitude muito elevada, o calor úmido tinha um efeito ruim sobre ele. Era um homem culto, uma espécie de cientista, e escrevera alguns trabalhos. Parecia bem familiarizado com ambas as filosofias, ocidental e oriental, e fora católico apostólico romano. Disse que estava insatisfeito com tudo há muito tempo, mas levara adiante por causa da família. Seu casamento era o que poderia ser considerado feliz, e ele amava seus dois filhos. Eles estavam agora na faculdade naquele país longínquo, e tinham um futuro brilhante. Mas a insatisfação em relação à sua vida e atividade foi aumentando constantemente ao longo dos anos, e ele enfrentou uma crise há alguns meses. Deixou a família e tomou todas as providências necessárias em relação à mulher e aos filhos, e agora aqui estava ele. Tinha dinheiro suficiente apenas para o básico, e viera encontrar Deus. Ele disse que não estava, de maneira alguma, desequilibrado e que tinha clareza sobre seu propósito.

Equilíbrio não é um assunto para ser julgado pelos frustrados ou pelos bem-sucedidos. Os bem-sucedidos podem ser os desequilibrados; e os frustrados tornam-se amargos e cínicos ou encontram uma fuga através de alguma ilusão projetada. O equilíbrio não está nas mãos dos analistas; ajustar-se às normas não necessariamente indica equilíbrio. As próprias normas podem ser o produto de uma cultura desequilibrada. Uma sociedade aquisitiva, com seus padrões e normas, é desequilibrada, seja de esquerda ou de direita, quer seja aquisitividade investida no Estado ou em seus cidadãos. Equilíbrio seria a não-aquisitividade. A idéia de equilíbrio e não-equilíbrio está ainda no campo do pensamento e, portanto, não pode ser o juiz. O próprio pensamento, a reação condicionada com seus padrões e julgamentos, não é a verdade. A verdade não é uma idéia, uma conclusão.

Pode Deus ser encontrado por meio da procura? Você pode procurar pelo incognoscível? Para encontrar, você deve conhecer o que está procurando. Se você procura para encontrar, o que você encontrar será uma projeção; será o que você deseja, e a criação do desejo não é a verdade. Procurar a verdade é negá-la. A verdade não tem residência fixa; não há um caminho nem um guia para ela, e a palavra não é a verdade. Será a verdade encontrada em um cenário particular, em um clima especial, entre certas pessoas? Está aqui e não ali? Este é o guia para a verdade e não um outro? Existe realmente um guia? Quando a verdade é procurada, o que é encontrado só pode surgir da ignorância, pois a própria busca nasce da ignorância. Você não pode procurar a realidade; você deve cessar para que a realidade seja.

“Mas não posso encontrar o sem-nome? Eu vim para este país porque aqui há um sentimento maior por essa busca. Materialmente, pode-se ser mais livre aqui, não é necessário possuir tantas coisas; as posses não lhe sobrecarregam aqui como em outros lugares. É por isso, em parte, que as pessoas vão para mosteiros. Mas existem fugas psicológicas em ir para um mosteiro e, como eu não quero fugir para um isolamento organizado, estou aqui, vivendo minha vida para encontrar o sem-nome. Será que tenho capacidade para encontrá-lo?”

É uma questão de capacidade?  A capacidade não implica seguir um rumo particular de ação, um caminho predefinido, com os ajustes necessários? Quando você faz essa pergunta, não está perguntando se você, um indivíduo comum, tem os meios necessários de obter o que deseja? Certamente sua pergunta sugere que somente os excepcionais encontram a verdade, e não o homem comum. Será a verdade concedida apenas a uns poucos, aos excepcionalmente inteligentes? Por que perguntamos se somos capazes de encontrá-la? Nós temos o padrão, o exemplo do homem que, presume-se, tenha descoberto a verdade; e o exemplo, sendo elevado muito acima de nós, cria incerteza em nós mesmos. O exemplo, consequentemente, assume grande importância, e há uma competição entre o exemplo e nós mesmos; nós também ansiamos por ser aquele que bate o recorde. Essa pergunta, “Eu tenho capacidade?”, não surge da comparação consciente ou inconsciente da pessoa entre o que ela é e o que ela supõe que o exemplo seja?

Por que nos comparamos com o ideal? E trará a comparação entendimento? O ideal é diferente de nós? Não é uma projeção, uma coisa criada por nós, e isso não impede, portanto, nosso entendimento de como nós somos? A comparação não é uma fuga do entendimento de nós mesmos? Existem muitos modos de fugirmos de nós mesmos, a comparação é um deles. Certamente, sem o autoentendimento a busca pela chamada realidade é uma fuga de si mesmo. Sem autoconhecimento, o deus que você busca é o deus da ilusão; e a ilusão, inevitavelmente, traz conflito e dor. Sem autoconhecimento, não pode haver raciocínio correto; e então todo o conhecimento é ignorância que só pode levar a confusão e à destruição. O autoconhecimento não é o objetivo final; é a única ferramenta de acesso ao inexaurível.

“O autoconhecimento não é extremamente difícil de ser adquirido e não leva muito tempo?”

A própria noção de que o autoconhecimento é difícil de se adquirir é um obstáculo ao autoconhecimento. Se me permite sugerir, não suponha que será difícil ou que levará muito tempo; não predetermine o que é e o que não é. Comece.  O autoconhecimento é para ser descoberto na ação do relacionamento; e toda a ação é relacionamento. O autoconhecimento não surge pelo auto-isolamento, pelo recolhimento; a negação da relação é a morte. A morte é a resistência suprema. A resistência, que é repressão, substituição ou sublimação em qualquer forma, é um obstáculo ao fluxo do autoconhecimento; mas a resistência é para ser descoberta no relacionamento, na ação. A resistência, seja negativa ou positiva, com suas comparações e justificativas, suas condenações e identificações, é a rejeição do que é. O que é está implícito; e a percepção do implícito, sem qualquer escolha, é a revelação dele. Essa revelação é o início da sabedoria. A sabedoria é essencial para que o desconhecido, o inexaurível, tome forma.

 

 (*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A simplicidade interior


Roberto Lira

Pensamos a simplicidade interior como algo que tem uma relevância muito maior do que a simplicidade de se satisfazer com pouca posse ou poucas coisas no cotidiano a vida. Ficar livre do fardo de várias coisas, especialmente, da posse de bens materiais ou abandono de algum vício degradante ou deteriorante, é relativamente fácil quando a jornada pessoal busca algo além da trivialidade da vida. Dar valor a poucas posses ou ser virtuoso nas condutas sociais não é ter simplicidade interior, isso nada mais é do que exteriorizar ausência de sofisticação.

Não queremos nesta reflexão desmerecer a simplicidade exterior, ela tem sua importância, pois não deixa de ser uma ação de probidade. Mas por que será que, geralmente, começamos com a simplicidade exterior e não com a interior? Será a razão disso nosso desejo, subliminar, de nos engrandecer aos olhos dos outros? Esse desejo, imposto pela mente, não aumenta nossa complexidade e vez de nos tornar simples, integralmente? Pensamos que a simplicidade interior nos leva também a ser simples exteriormente, mas nem sempre a simplicidade exterior nos leva a simplicidade interior. Portanto, a simplicidade interior é prioritária em nossas vidas.

Ser interiormente simples é não apresentar contradição dentro si mesmo. A simplicidade interior começa por ser honesto consigo mesmo, quando somos capazes de reconhecer que mentimos quando mentimos e não esconder tal fato ou fugirmos dele. A simplicidade interior entre outras coisas nos torna capaz de olhar a nós mesmos sem qualquer desfiguração, de vermos o falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro que existe em cada um de nós.

Ser simples interiormente nos torna capaz de observarmos as coisas sem intermediários e sem medo. Disso decorre uma percepção das coisas de forma clara, direta, sem palavras, sem símbolos e sem ideias. A simplicidade interior conduz nossas ações sem ideias e permite enfrentarmos aquilo que é, a cada minuto, com condutas livres e criadoras.

Há simplicidade interior resulta do autoconhecimento, quando compreendemos a nós mesmos: os movimentos de nossos pensamentos, nossas reações com outros, nossos conformismos para nos protegermos, nossa dependência das autoridades religiosas e/ou políticas. Essa simplicidade não pode existir quando nos apegamos a qualquer crença ou dogma, ela surgirá quando formos livres interiormente.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"Meu caminho e seu caminho"


Jiddu Krishnamurti (*)
 

ELE ERA UM ESTUDIOSO, falava muitos idiomas e era viciado em conhecimento como uma outra pessoa o é em bebidas alcoólicas. Estava incessantemente citando terceiros para apoiar suas próprias opiniões. Interessava-se por ciências e artes, e quando dava sua opinião, era com um movimento de cabeça e um sorriso que transmitia de um modo sutil que não era meramente sua opinião, mas a verdade final. Disse que tinha suas próprias experiências, abalizadas e convincentes para ele. “Você também tem suas experiências, mas não pode me convencer”, disse ele.  “Você segue o seu caminho, e eu o meu. Existem caminhos diferentes para a verdade, e todos vamos nos encontrar lá um dia.” Era amistoso, de uma forma distante, mas firme. Para ele os Mestres, embora não gurus reais e visíveis, eram uma realidade, e tornar-se seu discípulo era fundamental. Ele e vários outros designavam como discípulos àqueles que estivessem dispostos a aceitar esse caminho e a autoridade deles; mas ele e seu grupo não pertenciam àqueles que, pelo espiritualismo, descobriam guias entre os mortos. Para encontrar os Mestres você deve servir, trabalhar, sacrificar-se, obedecer e praticar certas virtudes; e, claro, a crença era necessária.

Estar preso à ilusão é fiar-se na experiência como um meio de descobrir o que é. O desejo e o anseio condicionam a experiência; e depender da experiência como um meio para o entendimento da verdade é buscar um modo de auto-engradecimento. A experiência jamais pode trazer libertação da dor; a experiência não é uma resposta adequada ao desafio da vida. O desafio deve ser enfrentado de modo novo, fresco, pois o desafio é sempre novo. Para entender o desafio de forma adequada, a memória condicionada da experiência deve ser posta de lado, as reações de prazer e dor dever ser profundamente entendidas. A experiência é um impedimento à verdade, pois ela pertence ao tempo, é o resultado do passado; e como pode a mente, que é o resultado da experiência, do tempo, entender o que é atemporal? A verdade da experiência não depende de idiossincrasias e fantasias pessoais; a verdade disso e percebida apenas quando há atenção sem censura, justificativa ou qualquer forma de identificação. A experiência não é uma abordagem à verdade; não existe “sua experiência” ou “minha experiência”, mas apenas a compreensão inteligente do problema.

Sem autoconhecimento a experiência produz ilusão; com autoconhecimento a experiência, que é a resposta ao desafio, não deixa um resíduo acumulativo como memória. O autoconhecimento é a descoberta momento a momento dos mecanismos do Eu, de suas intenções e buscas, seus pensamentos e desejos. Jamais pode haver “sua experiência” e “minha experiência”; o próprio termo “minha experiência” indica ignorância e aceitação da ilusão. No entanto, muitos gostam de viver em ilusão, pois há grande satisfação nela; é um refúgio particular que nos estimula e dá um sentimento de superioridade. Se tenho capacidade, talento ou astúcia, torno-me um líder, um intermediário, um representante daquela ilusão; e como a maioria das pessoas adora evitar o que é, há a construção de uma organização com propriedades e rituais, com votos e reuniões secretas. A ilusão é vestida de acordo com a tradição, sendo mantida dentro do campo da respeitabilidade; e como a maioria busca poder de uma forma ou de outra, o princípio hierárquico é estabelecido, o iniciante e o iniciado, o discípulo e o Mestre, e mesmo entre os Mestres existem níveis de progresso espiritual. A maioria adora explorar e ser explorado, e esse sistema oferece os meios, quer sejam ocultos ou claros.

Explorar é ser explorado. O desejo de usar outros para suas necessidades psicológicas produz dependência, e quando você depende, precisa manter, possuir; e o que você possui, possui você. Sem dependência, sutil ou evidente, sem possuir coisas, pessoas e ideias, você é vazio, uma coisa sem importância. Você quer ser algo, e para evitar o medo atormentador de ser nada você pertence a essa ou àquela organização, a essa ou àquela ideologia, a essa igreja ou àquele templo; assim você é explorado e, por sua vez, explora. Essa estrutura hierárquica oferece excelente oportunidade de auto-expansão. Você pode querer fraternidade, mas como pode haver fraternidade se você está buscando distinções espirituais? Você pode rir dos títulos mundanos; mas quando você admite o Mestre, o salvador, o guru no domínio do espírito, não está persistindo na atitude mundana? Podem haver divisões hierárquicos ou níveis de progresso espiritual na compreensão da verdade, na percepção de Deus? O amor não admite divisão. Ou você ama ou não ama; mas não faça da falta de amor um processo arrastado cuja finalidade é o amor. Quando você sabe, você não ama; quando você está atentamente desprovido de escolha quanto a esse fato, há aí uma possibilidade de transformação; mas diligentemente cultivar essa distinção entre o Mestre e o discípulo, entre aqueles que conseguiram e aqueles que não conseguiram, entre o salvador e o pecador, é negar o amor. O explorador, que por sua vez é explorado, encontra uma feliz zona de caça nesse ambiente escuro e ilusório.

A separação entre Deus ou a realidade e você é produzida por você, pela mente que se prende ao conhecido, à certeza, à segurança. Essa separação não pode ser ligada por uma ponte; não existe ritual, nenhuma disciplina, nenhum sacrifico que possa levá-lo a atravessá-lo; não existe nenhum salvador, nenhum Mestre, nenhum guru que possa levá-lo ao real ou destruir essa separação. A divisão não é entre o real e você; é em você, é o conflito de desejos opostos. O desejo cria seu próprio oposto; e a transformação não é uma questão de estar centrado em um desejo, mas de estar livre do conflito que o anseio causa. O anseio, em qualquer nível do ser de um indivíduo, gera mais conflito, e daí tentamos fugir de todas as maneiras possíveis, o que apenas aumenta o conflito, tanto interno quanto externo. Este não pode ser dissolvido por uma outra pessoa, por mais excelente que seja, nem por qualquer mágica ou ritual. Estes podem lhe anestesiar de forma agradável, mas, quando acordar, o problema ainda existirá. Mas a maioria não quer acordar, e assim vivemos em ilusão. Com a dissolução do conflito há tranquilidade, e só então a realidade pode tomar forma. Os Mestres, salvadores e gurus não são importantes, mas o que é essencial é entender o crescente conflito do desejo; e esse entendimento vem apenas por meio do autoconhecimento e da atenção constante aos movimentos do Eu.

A autopercepção é trabalhosa, e visto que a maioria prefere um caminho fácil e ilusório, trazemos à existência a autoridade que dá forma e padrão à nossa vida. Essa autoridade pode ser coletiva, o Estado; ou pode ser pessoal, o Mestre, o salvador, o guru. A autoridade de qualquer tipo é cegante, leva a ações irrefletidas; e como a maioria acha que ser ponderado é um esforço, entregamo-nos à autoridade.

A autoridade produz poder e o poder sempre se torna centralizado e, portanto, totalmente corruptível; ele corrompe não apenas quem o empunha, mas também aquele que o segue. A autoridade do conhecimento e da experiência perverte, quer seja conferida ao Mestre, a seu represente ou ao padre. É sua própria vida, esse conflito aparentemente interminável, que é significante, não o padrão ou o líder. A autoridade do Mestre e do padre o afasta da questão central, que é o conflito dentro de si mesmo. O sofrimento nunca pode ser entendido e dissolvido por meio da busca por um modo de vida. Tal busca é mero evitar o sofrimento, a imposição de um padrão, que é fuga; e o que é evitado apenas inflama, trazendo mais calamidade e dor. O entendimento de si mesmo, por mais doloroso ou passageiramente prazeroso, é o início da sabedoria.

Não existe caminho para a sabedoria. Se houver um caminho, a sabedoria será o formulado, já conhecida, já imaginada. Pode a sabedoria ser conhecida ou cultivada? É uma coia a ser aprendida, acumulada? Se for, então se torna mero conhecimento, uma coisa da experiência e dos livros. A experiência e o conhecimento são uma cadeia continua de reações e, portanto, nunca podem compreender o novo, o fresco, o não-criado. A experiência e o conhecimento, sendo contínuos, formam um caminho para suas próprias projeções, e desse modo estão constantemente tolhendo. A sabedoria é o entendimento do que é de momento a momento, sem o acúmulo de experiências e conhecimento. O que é acumulado não dá liberdade para entender, e sem liberdade não há descobrimento; e é essa descoberta incessante que cria a sabedoria. Ela é sempre nova, sempre fresca, e não há meios de acumulá-la. Os meios destroem o frescor, a novidade, a descoberta espontânea.

Os muitos caminhos para uma realidade são a invenção de uma mente intolerante; são o resultado de uma mente que cultiva a tolerância. “Eu sigo meu caminho e você segue o seu, mas sejamos amigos e nos encontraremos finalmente.” Você e eu nos encontraremos se você estiver indo para o norte e eu para o sul? Podemos ser amigos se você tem um conjunto de crenças e eu outro, se eu sou um assassino coletivo e você um pacifista? Ser amigo subentende relacionamento em trabalho, em pensamentos; mas existirá qualquer relação entre o homem em ilusão e aquele que é livre?  O homem livre pode tentar estabelecer algum tipo de relacionamento com aquele em cativeiro; mas aquele que está em ilusão não pode ter um relacionamento com o homem livre.

O separado, prendendo-se à sua separação, tenta estabelecer um relacionamento com outros que também estão fechados em si mesmos; tais tentativas, invariavelmente, criam conflito e dor. Para evitá-la, os inteligentes inventam a tolerância, cada um examinando sua barreira autolimitante e tentando ser gentil e generoso. A tolerância é da mente, não do coração. Você fala de tolerância quando ama? Mas quando o coração está vazio a mente o enche com seus mecanismos astutos e seus medos. Não existe comunhão onde há tolerância.

Não existe um caminho para a verdade. A verdade deve ser descoberta, mas não existe uma fórmula para seu descobrimento. O que é formulado não é verdadeiro. Você deve partir para o mar inexplorado, e o mar inexplorado é você mesmo. Você deve partir para se descobrir, mas não segundo algum plano ou padrão, porque aí não há descobrimento. O descobrimento traz alegria – não a alegria lembrada, comparativa, mas a alegria sempre nova. O autoconhecimento é o início da sabedoria em cujo silêncio e tranquilidade existe o incomensurável.

 
(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Política


Jiddu Krishnamurti (*)
 
BEM ALTO NAS MONTANHAS chovera todo o dia. Não era uma chuva fina, leve, mas um daqueles aguaceiros torrenciais que levam as estradas e desenterram as árvores nas colinas, causando deslizamentos de terra e turbulências nos rios, que ficam calmos em algumas horas.  Um menininho, molhado até os ossos, brincava em uma lagoa rasa e não prestava a menor atenção à voz zangada e estridente de sua mãe. Uma vaca descia pela estrada lamacenta enquanto subíamos. As nuvens pareciam se abrir e cobrir a terra de água.  Estávamos encharcados e retiramos a maioria de nossas roupas, e o contato da chuva com a pele era agradável. A casa situava-se bem alto na encosta da montanha e a cidade estava abaixo. Um vento forte soprava do oeste, trazendo mais nuvens escuras e furiosas.

Havia uma lareira na sala e várias pessoas estavam aguardando para discutir temas. A chuva, batendo nas janelas, formara uma grande poça no chão e a água descia até pela chaminé, fazendo o fogo crepitar.

Ele era um político muito famoso, realista, profundamente sincero e ardentemente patriota. Não era intolerante nem interesseiro, sua ambição não era dirigida a si mesmo, mas a uma idéia e ao povo.  Não era um mero pregador empolado e eloquente ou um caçador de votos; ele sofrera pela causa e, curiosamente, não era amargo. Parecia mais um erudito que um político. Mas a política era o alento da sua vida e o seu partido o obedecia, embora com certo nervosismo. Ele era um sonhador, mas pusera tudo de lado pela política. Seu amigo, o economista-chefe, também estava lá; tinha teorias complicadas e temas voltados para a distribuição de enormes receitas. Parecia conhecido dos economistas tanto da direita quanto da esquerda, e tinha suas próprias teorias para a salvação econômica da humanidade. Falava com facilidade e não havia hesitação nas palavras. Ambos haviam discursado para grandes multidões.

Você já percebeu, nos jornais e nas revistas, a quantidade de espaço dado aos políticos, ao que dizem os políticos e às suas atividades? Claro, são fornecidas outras notícias, mas as notícias políticas predominam; a vida econômica e política tornou-se primordial. As circunstâncias exteriores – conforto, dinheiro, posição social e poder – parecem dominar e moldar nossa existência. A exibição exterior – o título, os trajes, a saudação, a bandeira – tornou-se cada vez mais importante e o processo total da vida foi esquecido ou deliberadamente posto de lado. É tão mais fácil lançar-se em uma atividade social e política do que compreender a vida como um todo. Estar associado a qualquer pensamento organizado, a atividades políticas ou religiosas, oferece uma fuga respeitável da mediocridade e da labuta da vida diária. Com um pequeno coração você pode falar de coisas importantes e dos líderes populares; pode ocultar sua superficialidade com as frases feitas dos assuntos mundiais; sua mente inquieta pode se acomodar feliz e com apoio popular para propagar a ideologia de uma nova ou de uma velha religião.

A política é a conciliação dos efeitos; e como a maioria de nós está preocupada com os efeitos, o exterior assumiu significado dominante. Pela manipulação de efeitos esperamos produzir ordem e paz; mas, infelizmente, não é tão simples assim. A vida é um processo total, tanto interior quanto exterior; e o exterior definitivamente afeta o interior, mas o interior invariavelmente sobrepuja o exterior. O que você é, você cria exteriormente. O exterior e o interior não podem ser separados e mantidos em compartimentos vedados, pois interagem constantemente um com o outro, mas o anseio interior, as buscas e os motivos ocultos são sempre mais poderosos. A vida não depende da atividade política ou econômica; a vida não é uma simples exibição exterior, assim como a árvore não é a folha ou o galho. A vida é um processo total cuja beleza só pode ser descoberta na sua integração. Essa não acontece no nível superficial das conciliações políticas e econômicas; ela se encontra além de causas e efeitos.

Por jogarmos com causas e efeitos e nunca irmos além deles, exceto verbalmente, nossas vidas são vazias, sem muito significado. É por esse motivo que nos tornamos escravos da empolgação política e do sentimentalismo religioso. Só existe esperança na integração dos vários processos a partir dos quais somos formados. Essa integração não acontece por meio de qualquer ideologia ou quando se obedece a qualquer autoridade em especial, política ou religiosa; ela acontece apenas por meio da percepção ampla e profunda. Essa percepção deve chegar aos níveis mais profundos da consciência e não se contenta com respostas superficiais.  


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ciência, fé e extrapolação ou...


Roberto Lira


Marcelo Gleiser publicou ontem na sua coluna da Folha de São Paulo (aqui) o texto intitulado “Ciência, fé e extrapolação”, abordando a questão da compreensão do mundo do ponto de vista da ciência e da fé. Gleiser inicia sua manifestação:

“Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença”? Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a fé como também informa de que modo um indivíduo se relaciona com o mundo."

Na nossa insciência, ficamos questionando se há outra possibilidade de compreendermos o mundo, para condução de nossa vida, além do ponto de vista dicotômico da ciência e da fé? Perceber a realidade nos relacionamentos com as coisas e/ou com as pessoas requer método científico ou alguma crença? É necessário que nossas ações se balizem em comprovações científicas ou sejam amparadas pelas crenças? A observação isenta de preconceitos, a atenção reflexiva, não seria a forma mais natural de compreendermos nossas ações no referido mundo?

Para Marcelo Gleiser:

“Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o "desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido com o ‘conhecível’.

“A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto, conhecível), e outra fora dele (e que é, portanto, desconhecível ou inescrutável).”

Consentimos com a observação do Gleiser quando ele afirma que e o secular atrito entre fé e ciência decorre de se tentar igualar duas “realidades” tão distintas e que uma pertence a este mundo e outra está fora dele. Mas, discordamos quando ele as classifica: uma como “conhecível” e a outra como “inescrutável”. Entendemos que aquela que ele designa de “conhecível” pode até ser conhecível, mas é transitória, especialmente quando se trata dos nossos relacionamentos. É como já dizia o filósofo Heráclito de Éfeso: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez não somos os mesmos, e também o rio mudou”. Quanto a que ele chama de “inescrutável”, pode ser que assim o seja por meio do método científico, mas quem garante que ela não possa ser percebida ou compreendida por outros meios?

 O Marcelo finaliza seu texto afirmando que:

“Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de arriscar e de estar errada. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.”

Consentimos, também, com a afirmação acima apresentada. Mas, gostaríamos de acrescentar nosso entendimento de que, além dos cientistas outros seres, inscientes cientificamente, também possam num insight enxergar mais além, ou melhor, perceber e/ou compreender aquilo que ele chama de inescrutável”. Os cientistas antes de testarem suas teorias não têm uma intuição sobre o objeto, ou fato, a ser estudado independente de análise, raciocínio ou crença?

Atenção! Aqui e agora!





terça-feira, 14 de agosto de 2012

A "atenção passiva"




Roberto Lira

Ao depararmo-nos com a sugestão: mantenha-se passivamente atento, não nos parece que estamos diante de um paradoxo? Geralmente reagimos dizendo: como manter uma atenção passiva, se para ficarmos atento requer estar alerta, concentrado; enquanto que, ser passivo é não ter iniciativa, é ficarmos indiferente ou apático? Como unificar essas duas ações que semanticamente nos parece tão antagônicas?
Para achegarmo-nos a alguma compreensão desse aparente paradoxo que nos possa ser útil, talvez seja profícuo agregarmos a questão do observador e da coisa observada. Para isso, vamos nos amparar em um trecho do livro As Paixões do Ego*, de Humberto Mariotti, páginas 248/9, onde ele comenta essa questão da atenção passiva denominando-a de a fenomenologia da inocência:
 “Atenção passiva: a fenomenologia da inocência
Recordemos que Bohm assinala que a noção de que o observador não pode ser separado daquilo que observa surgiu na física quântica, como condição necessária ao entendimento das leis fundamentais da matéria. Na verdade, essa noção remonta às tradições védicas da Índia. Segundo Bohm, a descoberta fundamental de Krishnamurti foi perceber que não nos damos conta do que realmente acontece porque não temos consciência de nossos processos de pensamento. Para o filósofo indiano, em geral nos damos conta do que estamos pensando, mas pouco ou nada sabemos sobre como estamos pensando num determinado momento. Por outras palavras, não fizemos a epistemologia do nosso pensar. Isso decorre de que não estamos suficientemente atentos para ser capazes de observar os nossos processos de pensamento.
Como conhecer a estrutura e a função desses processos? Segundo Krishnamurti, por meio da auto-observação, mais especificamente do método que ele denomina de atenção passiva, que consiste em refletir e, ao mesmo tempo, estar atento ao que acontece enquanto se reflete. Mas é importante fazê-lo sem crítica, sem aceitar ou rejeitar desde logo o que se está percebendo. Sem tentar, enfim, dar de imediato “um sentido” ao que se percebe, mesmo porque esse “sentido”, no mais das vezes, não passa de uma forma de reduzir tudo ao que achamos que faz sentido.
Trata-se de refletir sem tentar logo de saída pôr ordem na confusão que muitas vezes surge em nossa mente enquanto pensamos. É fundamental não ceder à resistência inicial ao contato com idéias novas. Pelo contrário, é preciso deixá-las vir e examiná-las em seus mínimos detalhes, buscar a familiaridade com elas. Não nos esqueçamos de que essa resistência, esse espanto inicial, representava, para Aristóteles, o ponto de partida da investigação filosófica e não uma oposição a ela.
No entender de Krishnamurti, a atitude de evitar a intervenção precoce da crítica e da vontade permitirá que o pensamento se auto-regule. Por ser o cérebro um sistema autopoiético, a não-interferência imediata em seus processos permitirá que nos beneficiemos dos frutos dessa auto-regulação, que é sistêmica e acontece quando conseguimos que nossa mente fique quieta.”  

Segundo Krishnamurti, a auto-observação nos torna capaz de perceber que somos nossos próprios preconceitos (pensamentos) e não apenas observadores isentos destes. Ou seja, o observador é a coisa observada. Tal consideração não é difícil de entender intelectualmente, mas transformá-lo em mudanças significativas no viver, certamente, é o xis da questão. Essas mudanças, para Krishnamurti, não são desenvolvidas gradualmente: surgem instantaneamente, num insight; não dependem do tempo, do pensamento e por isso é imprescindível estar atento a eles. Ele afirma que quando observamos um sentimento, ou pensamento, por tempo suficiente geralmente ele se modifica ou desaparece. Todavia se a observação ocorre de forma coercitiva, tentando nos livrar dele, continuaremos como observadores. Desse modo, o sentimento, ou pensamento, cedo ou tarde voltará a nos incomodar, tendo em vista ter sido reprimido e não vivido na sua totalidade.
Manter essa “atenção passiva”, de modo integral nos nossos relacionamentos, é algo que só ocorre ocasionalmente no nosso viver. Mesmo assim, se estivermos consciente que ela é possível e quiçá necessária para alcançarmos a almejada liberdade que a quietude da mente pode nos proporcionar.
Atenção! Aqui e agora! 

* As Paixões do Ego: Complexidade, Política e Solidariedade. Humberto Mariotti. São Paulo: Palas Athena, 2000. 356 p.









segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Carma


Jiddu Krishnamurti (*)


O SILÊNCIO NÃO É para ser cultivado, não é para ser deliberadamente produzido; não é para ser buscado, racionalizado ou meditado. O cultivo deliberado do silêncio é como a satisfação de um prazer há muito desejado; o desejo de silenciar a mente é apenas a busca de sensação. Esse silêncio é somente uma forma de resistência, um isolamento que leva a deterioração. O silêncio que é comprado é uma coisa de mercado no qual há o ruído da atividade. O silêncio vem com a ausência do desejo. O desejo é ágil, astuto e profundo. A recordação interrompe a varredura do silêncio, e uma mente presa na experiência não pode estar silenciosa. O tempo, o movimento de ontem desaguando no hoje e no amanhã, não é silêncio. Com o cessar desse movimento, há silêncio, e só então aquilo que é inefável pode tomar forma.
 

“Eu vim para falar sobre carma. Claro que tenho algumas opiniões sobre isso, mas gostaria de conhecer as suas”.

Opinião não é verdade; devemos por de lado as opiniões para encontrar a verdade. Existem inúmeras opiniões, mas a verdade não é deste ou daquele grupo. Para o entendimento da verdade, todas as ideias, conclusões e opiniões precisam cair como as folhas secas de uma árvore. A verdade não é para ser encontrada em livros, em conhecimento, na experiência. Se você estiver buscando opiniões, não encontrará nenhuma aqui.

“Mas podemos conversar sobre carma e tentar entender sua importância, não?”

Isso, claro, é um assunto muito diferente. Para entender, as opiniões e as conclusões precisam cessar.

“Por que você insiste nisso?”

Você conseguirá entender algo se já tiver decidido sobre isso ou se repetir as conclusões de outra pessoa? Para encontrar a verdade desse assunto, não devemos abordá-lo de uma nova maneira, com uma mente que não esteja envolta em preconceitos? O que é mais importante: estar livre de conclusões, de preconceitos, ou especular sobre alguma abstração? Não é mais importante encontrar a verdade do que discutir sobre o que é a verdade? Não é importante descobrir a verdade com respeito ao carma? Ver o falso como o falso é começar a entender isso, não é? Como podemos ver a verdade ou o falso se nossa mente está firmemente entrincheirada na tradição, nas palavras e nas explicações? Se a mente estiver amarrada a uma crença, como ela poderá ir longe? Para viajar para longe, a mente precisa estar livre. A liberdade não é algo a ser obtido no final de um longo esforço; ela deve estar logo no início da viagem.

“Quero descobrir o que carma significa para você?”

Senhor, vamos fazer a viagem de descobrimento juntos. Simplesmente repetir as palavras de outra pessoa não tem muita importância. É como tocar um disco. A repetição ou imitação não produz liberdade. O que você quer dizer com carma?

“É uma palavra em sânscrito que significa fazer, ser, agir e assim por diante. Carma é ação, e ação é o resultado do passado. A ação não pode existir sem o condicionamento da formação. Por meio de uma série de experiências do condicionamento e do conhecimento, a formação da tradição é construída, não apenas durante a vida atual do indivíduo e do grupo, mas por meio de muitas encarnações. A constante ação e interação entre a formação, que é o “eu”, e sociedade, a vida, é o carma; e o carma cria um compromisso moral para a mente, o “eu”. O que fiz em minha vida passada, ou mesmo ontem, continua valendo e me molda, proporcionando-me dor ou prazer no presente. Há o carma de grupo ou coletivo e o individual. Tanto o de grupo quanto o individual estão contidos na cadeia de causa e efeito. Haverá sofrimento ou alegria, castigo ou recompensa, de acordo com que fiz no passado”.

Você diz que a ação resulta do passado. Essa ação não é ação absolutamente, mas apenas uma reação, não é? O condicionamento, a formação, reage a estímulos; essa reação é a resposta da memória, que não é ação, mas carma. No momento, não estamos preocupados com o que é ação. Carma é a reação que surge de certas causas e produz certos resultados. Carma é essa cadeia de causa e efeito. Basicamente, o processo do tempo é carma, não é? Desde que haja um passado, deve haver o presente e o futuro. Hoje e amanhã são os efeitos de ontem; ontem em conjunção com hoje cria o amanhã. Carma conforme é entendido de modo geral, é o processo de compensação.

“Como diz, carma é um processo do tempo, e a mente é resultado do tempo. Somente uns poucos afortunados podem escapar das garras do tempo; o restante de nós está unido ao tempo. O que fizemos no passado, bem ou mal, determina o que somos no presente.”

A formação, o passado, é um estado estático? Não está passando por modificações constantes? Você não é o mesmo hoje do que era ontem; tanto fisiológica quanto psicologicamente, há uma mudança constante acontecendo, não é?

“Claro.”

Então, a mente não é um estado fixo. Nossos pensamentos são transitórios, continuamente em mudança; eles são a resposta da formação. Se eu for criado em determinada classe social, em uma cultura definida, responderei aos desafios, aos estímulos, de acordo com meu condicionamento. Com a maioria de nós, esse condicionamento está tão enraizado que a resposta é quase sempre segundo o padrão. Nossos pensamentos são a resposta da formação. Nós somos a formação; esse condicionamento não está separado nem é dessemelhante de nós. Com a mudança da formação, nossos pensamentos também mudam.

“Mas, certamente, o pensador é totalmente diferente da formação, não é?”

Será? O pensador não é o resultado dos pensamentos dele? Ele não é composto de seus pensamentos? Há uma entidade separada, um pensador separado de seus pensamentos? O pensamento não criou o pensador, não deu a ele permanência no meio da impermanência dos pensamentos? O pensador é o refúgio do pensamento e se coloca em níveis diferentes de permanência.

“Percebo que isso é assim, mas é realmente um choque para mim perceber os truques que o pensamento está usando com ele mesmo.”

O pensamento é a resposta da formação, da memória; a memória é o conhecimento, o resultado da experiência. Essa memória, por meio de mais experiências e respostas, torna-se mais forte, maior, mais aguçada, mais eficiente. Uma forma de condicionamento pode ser substituída por outra, mas ainda será condicionamento. A resposta desse condicionamento é carma, não é? A resposta da memória é chamada de ação, mas ela é apenas reação; essa “ação” gera mais reação e assim há a suposta cadeia de causas e efeitos. Mas a causa também não é o efeito? Nem causa nem efeito são estáticos. Hoje é o resultado de ontem, e hoje é a causa de amanhã; o que foi a causa torna-se o efeito, e o efeito, a causa. Uma deságua na outra. Não existe um momento em que a causa não seja também o efeito. Somente o especializado é fixo em sua causa e, portanto, em seu efeito. O fruto do carvalho não pode tornar-se outra coisa que não seja um carvalho. Na especialização, há morte; mas o homem não é uma entidade especializada, ele pode ser o que desejar. Ele pode abrir caminho através de seu condicionamento – e ele precisará fazer isso, se quiser descobrir o real. Você precisa cessar de ser um suposto brâmane para perceber Deus.

O Carmo é um processo do tempo, o passado movendo-se pelo presente para o futuro; essa cadeia é o modo de pensar. O pensamento é o resultado do tempo, e só pode existir aquilo que é imensurável, eterno, quando o processo do pensamento cessa. A quietude da mente não pode ser induzida, não pode ser produzida por meio de uma prática ou disciplina. Se a mente for tornada quieta, então o que quer que chegue a ela será apenas uma autoprojeção, a resposta da memória. Com a compreensão do condicionamento da mente, com a conscientização sem escolha das próprias respostas dela como pensamentos e sentimentos, a tranquilidade chega à mente. Essa quebra da cadeia do carma não é uma questão de tempo; pois, por meio do tempo, o eterno não existe.

O carma precisa ser entendido como um processo total, não apenas como algo do passado. O passado é tempo, que também é o presente e o futuro. Tempo é memória, palavra, ideia. Só quando a palavra, o nome, a associação e a experiência não existem é que a mente está quieta, não só nas camadas superficiais, mas completa e integralmente.


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era 2009

domingo, 5 de agosto de 2012

Tempo, hábito e ideais


Jiddu Krishnamurti (*)



CAÍRAM FORTES CHUVAS COM vários centímetros por dia durante mais de uma semana, e o rio estava muito cheio. Já transbordara de suas margens, e algumas aldeias foram alagadas. Os campos estavam debaixo d’água, e o gado teve de ser transferido para um terreno mais alto. Alguns centímetros mais e o rio cobriria a ponte, e, então, haveria verdadeiros problemas; mas quando estava prestes a alcançar o ponto perigoso, as chuvas pararam e o rio começou a baixar. Alguns macacos que haviam se refugiado nas árvores estavam isolados, e teriam de permanecer lá por um ou dois dias.

No início de certa manhã, quando as águas haviam baixado, partimos pelo campo aberto, que era plano quase até o pé das montanhas. A estrada passava por uma aldeia após outra, e por fazendas equipadas com máquinas modernas. Era primavera, e ao longo da estrada as árvores estavam em flor. O carro avançara suavemente. Havia o ronronar do motor, bem como o murmúrio da borracha dos pneus na estrada; e, ainda assim, havia um extraordinário silêncio em todos os lugares, entre as árvores, no rio, e sobre a terra plantada.  

A mente fica em silêncio apenas com a abundância de energia, quando há aquela atenção em que cessa toda contradição, toda pulsão do desejo em diferentes direções. O esforço do desejo de estar em silêncio não gera silêncio. O silêncio não deve ser adquirido através de qualquer forma de coerção, não é a recompensa da repressão ou mesmo da sublimação. Mas a mente que não está em silêncio jamais é livre. E só para a mente silenciosa é que os céus se abrem. O êxtase que a mente procura não é encontrado através de busca, nem reside na fé. Só a mente silenciosa pode receber aquela benção que não é da Igreja nem da crença. Para a mente estar em silêncio, todos os seus cantos contraditórios devem se unir e se fundir na chama da compreensão. A mente silenciosa não é uma mente reflexiva. Para refletir, deve haver o observador e o observado, o experimentador carregado de passado. Na mente silenciosa, não há centro a partir do qual se transformar, ser ou pensar. Todo desejo é contradição, pois cada centro de desejo se opõe a outro centro. O silêncio da mente total é meditação.



Era um homem bastante jovem, com uma cabeça grande, olhos claros e mãos de aparência habilidosa. Falava com facilidade e autoconfiança, e trouxera a esposa junto, uma moça digna que, evidentemente, não diria nada. Ela, provavelmente, viera sob a persuasão dele, e preferia ouvir.

“Sempre me interessei por questões religiosas”, disse ele, “e logo no início da manhã, antes que as crianças acordem e o burburinho da casa comece, passo um tempo considerável praticando a meditação. Acho-a muito útil para ganhar controle da mente e cultivar certas virtudes necessárias. Ouvi seu discurso sobre meditação há alguns dias, mas como sou novato em seus ensinamentos, não fui capaz de entender bem. Mas não vim para falar sobre isso. Vim para falar do tempo – o tempo como um meio para a percepção do Supremo. Até onde vejo, o tempo é necessário para o cultivo daquelas qualidades e sensibilidades da mente essenciais para que a iluminação seja alcançada. É assim, não é?”

Se começar por presumir certas coisas, será possível encontrar a verdade da questão? As conclusões não impedem a clareza de pensamento?

“Sempre dei como certo que o tempo é necessário para atingir a libertação. Isto é o que a maioria dos livros religiosos afirma, e eu nunca questionei. Creio que há indivíduos aqui e ali que alcançaram esse estado de êxtase instantaneamente; mas são poucos, pouquíssimos. O restante de nós deve ter um tempo, curto ou longo, no qual preparar a mente para receber aquele êxtase. Mas compreendo bem o que você quer dizer quando afirma que, para pensar com clareza, a mente deve estar livre de conclusões.”

E é extremamente árduo estar livre delas, não é?

Pois bem, o que entendemos por tempo? Há o tempo do relógio, o tempo como passado, presente e futuro. Há tempo como memória, tempo como distância percorrida daqui até ali e há tempo como resultado, o processo de se tornar algo. Tudo isso é o que entendemos por tempo. E é possível para a mente estar livre do tempo, ir além de suas limitações? Comecemos com o tempo cronológico. É possível estar livre do tempo no sentido real, cronológico?

“Não, se queremos pegar um trem! Para estarmos saudavelmente ativos neste mundo, e para manter algum tipo de ordem, o tempo cronológico é essencial.”

E, então, há tempo como memória, hábito, tradição; e o tempo como esforço de alcançar, de realizar, de se tornar. Obviamente, é preciso tempo para aprender uma profissão, ou adquirir uma habilidade. Mas o tempo também é necessário para a percepção do Supremo?”

“A mim, parece que sim.”

O que é que está alcançando, percebendo?

“Suponho que é o que você chama de ‘eu’.”

Que é um conjunto de memórias e associações, tanto conscientes como inconscientes. É a entidade que goza e sofre, que pratica virtudes, que adquire conhecimento, que acumula experiência, a entidade que conheceu realização e frustração, e é quem pensa que existe a alma, o Atman, o Eu Superior. Essa entidade esse “mim”, que é memória, pensa que alcançará o Supremo ao longo do tempo. Mas seu “Supremo” é algo que ela formulou e, portanto, está também no domínio do tempo, não é?

“Da maneira como você expõe, parece que aquele que faz o esforço, e o objetivo pelo qual ele se esforça, estão igualmente na esfera do tempo.”

Através do tempo você só pode atingir o que o tempo criou. O pensamento é a reação da memória, e o pensamento só pode perceber aquilo que o pensamento concebeu.

“Você está dizendo, senhor, que a mente deve estar livre de memória e do desejo de alcançar, de perceber?”

Logo chegaremos a esse ponto. Se possível, abordemos o problema de modo diferente. Tomemos a violência, por exemplo, e os ideais de não violência. Dizem que o ideal de não violência dissolve a violência. Mas será mesmo? Digamos que sou violento, e meu ideal é ser não violento. Há um hiato, uma lacuna entre o que realmente sou e aquilo que eu deveria ser, o ideal. Cobrir essa distância intermediária leva tempo; o ideal deve ser atingido progressivamente, e durante esse intervalo de abordagem gradual tenho a oportunidade de me abandonar ao prazer da violência. O ideal é o oposto do que sou, e todo oposto contém em si a semente de seu próprio oposto. O ideal é uma projeção do pensamento, que é memória, e a prática do ideal é uma atividade autocentrada, tal como a violência. Ao longo de séculos foi dito – e nós continuamos a repetir – que o tempo é necessário para nos livrarmos da violência; mas isso é um mero hábito, e não há sabedoria por trás disso. Ainda somos violentos. Portanto, o tempo não é o fator da liberdade; o ideal da não violência não liberta a mente da violência. A violência não poderia simplesmente cessar, sem ser amanhã, ou daqui a dez anos?

“Você quer dizer instantaneamente?”

Quando usa essa palavra, você não esta pensando ou sentindo ainda em termos de tempo? A violência não pode apenas cessar? E não em determinado momento?

“Será possível uma coisa dessas?”

Só com a compreensão do tempo. Estamos acostumados com ideais, temos o hábito de resistir, reprimir, sublimar e substituir tudo que envolve esforço e luta ao longo do tempo. A mente pensa em hábitos; é condicionada ao gradualismo, e passou a considerar o tempo como meio de alcançar a libertação da violência. Com o entendimento da falsidade de todo esse processo, a verdade da violência é vista, e este é o fator libertador, e não o ideal ou o tempo.

“Eu acho que compreendo o que você está dizendo, ou melhor, sinto a verdade disso. Mas não é muito difícil libertar a mente do hábito?”

É difícil quando você combate o hábito. Por exemplo, o hábito de fumar. Combater esse hábito é dar-lhe vida. O hábito é mecânico, e resistir só alimenta a máquina, dá mais poder a ela. Mas se você considera a mente e observa a formação de seus hábitos, então, como o entendimento do problema maior, o menor se torna insignificante e se desfaz.

“Por que a mente forma hábitos?”

Esteja cônscio dos mecanismos de sua própria mente e você descobrirá por quê. A mente forma hábitos a fim de estar segura, certa, imperturbável, a fim de ter continuidade. Memória é hábito. Falar um determinado idioma é um processo de memória, hábito; mas o que se expressa na linguagem, uma série de pensamentos e sentimentos, também é habitual, se baseia naquilo que lhe foi dito, na tradição e assim por diante. A mente se move do conhecido para o conhecido, de uma certeza para outra; por isso, nunca há liberdade do conhecido.

Isso nos traz de volta ao ponto em que começamos. Presume-se que o tempo é necessário para a percepção do Supremo. Mas o que o pensamento pode conceber ainda está no campo do tempo. A mente não tem a menor possibilidade de formular o desconhecido. Ela pode especular a respeito disso, mas sua especulação não é o desconhecido.

“Então, o problema se coloca; como podemos perceber o Supremo?”

Não por qualquer método. Praticar um método é cultivar outro conjunto de memórias, vinculado ao tempo; mas a percepção só é possível quando a mente já não está nas amarras do tempo.

“A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas? Um agente externo não é necessário?”

Quando você busca um agente externo, está de volta a seu condicionamento, em suas conclusões. Nossa única preocupação é com a pergunta: “A mente pode se libertar de suas amarras autoproduzidas?” Todas as outras questões são irrelevantes e impedem que a mente aborde esta pergunta. Não há atenção quando há motivo, quando há a pressão para alcançar, para perceber; ou seja, quando a mente está buscando um resultado, um fim. A mente descobrirá a solução desse problema, não através de argumentos, opiniões convicções ou crenças, mas através da própria intensidade da questão.
 

(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 3 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012