quinta-feira, 12 de julho de 2012

Satisfação


Jiddu Krishnamurti (*)


O CÉU ESTAVA CARREGADO de nuvens e o dia quente, embora a brisa brincasse com as folhas. Houve um trovão ao longe e um chuviscar assentava a poeira da estrada. Os papagaios voavam loucamente, gritando até não poder mais, e uma grande águia pousou no galho mais alto de uma árvore, alisando-se e observado toda a atividade que acontecia embaixo. Um macaquinho estava sentado em outro galho. Os dois se vigiavam a uma distância segura. Logo um corvo se juntou a eles. Depois de sua higiene matinal, a águia permaneceu imóvel por um momento e então levantou vôo. Exceto para os seres humanos, era um novo dia; nada era igual à ontem. As árvores e os papagaios não eram os mesmos; a grama e os arbustos tinham uma qualidade totalmente diferente. A recordação de ontem só obscurece o hoje e a comparação impede a percepção. Como eram bonitas as flores vermelhas e amarelas! A beleza não pertence ao tempo. Carregamos nossos fardos diariamente, e jamais existe um dia sem a sombra de muitos ontens. Nossos dias são um movimento contínuo, ontem misturando-se com o hoje e o amanhã; jamais há um fim. Temos medo do fim; mas, sem fim, como pode haver o novo? Sem a morte, como pode haver a vida? E como sabemos pouco sobre as duas! Temos todas as palavras, as explicações, e elas nos satisfazem. As palavras distorcem o fim e só há fim quando a palavra não existe. Conhecemos o fim que é das palavras; mas jamais conhecemos o fim sem palavras, o silêncio que não é das palavras. Conhecer é memória; a memória é sempre continua e o desejo é o fio que liga os dias. O fim do desejo é o novo. A morte é o novo e a vida como continuação é somente memória, uma coisa vazia. Com o novo, vida e morte são iguais.

Um menino andava a passos largos, cantando enquanto caminhava. Ele sorria para todos por quem passava e pareceria ter muitos amigos. Estava malvestido, com um pano sujo em torno da cabeça, mas tinha um rosto radiante e olhos vivos. Com seus passos largos, passou por um homem gordo usando um boné. O homem andava devagar, com a cabeça baixa, preocupado e nervoso. Ele não ouviu a canção entoada pelo menino, nem mesmo olhou para o cantor. O menino transpôs os grandes portões; passando por lindos jardins e atravessando a ponte sobre o rio, contornou a curva em direção ao mar, onde se juntou a alguns companheiros. Enquanto a escuridão aumentava, todos começaram a cantar juntos. Os faróis de um carro iluminavam seus rostos e seus olhos estavam absortos em prazeres desconhecidos. Chovia bastante e tudo estava encharcado.

Ele era um doutor não só em medicina, mas também em psicologia. Magro, calado e contido, viera de outras terras e estava nesse país tempo suficiente para ter-se acostumado ao sol e às chuvas fortes. Ele trabalhara, disse, como médico e psicólogo durante a guerra e ajudara ao máximo, até onde sua capacidade permitiu, mas estava insatisfeito com o que fizera. Queria fazer muito mais, ajudar muito mais profundamente; o que tinha feito fora muito pouco e algo estava faltando.

Sentamo-nos sem falar por um longo período enquanto ele recolhia as pressões de sua agonia. O silêncio é uma coisa estranha. O pensamento não produz silêncio, nem o silêncio se constrói. O silêncio não pode ser reunido nem chega pelo ato da vontade. A recordação do silêncio não e silêncio. O silêncio estava presente na sala em uma quietude palpitante e a conversa não o perturbou. A conversa fazia sentido naquele silêncio, que era o segundo plano da palavra. O silêncio transmitia expressão ao pensamento, mas o pensamento não era silêncio. O raciocínio não estava presente, mas o silêncio estava; e o silêncio penetrava, reunia e dava expressão. O raciocínio jamais pode penetrar, e no silêncio existe a comunhão.

O médico dizia estar insatisfeito com tudo: com seu trabalho, com suas capacidades, com todas as ideias que cultivara tão cuidadosamente. Tentara as várias escolas de pensamento e estava insatisfeito com todas elas. Durante os vários meses desde que chegara aqui, estivera com diversos mestres, mas se afastara com ainda maior insatisfação. Experimentara muitos “ismos”, incluindo o cinismo, mas a insatisfação ainda estava lá.

Você está em busca de satisfação e não a encontrou ainda, é isso? O desejo por satisfação está causando o descontentamento? Buscar subentende o conhecido. Você diz que está insatisfeito e ainda assim está buscando; você esta procurando por satisfação e ainda não a encontrou. Você quer satisfação, o que significa que você não está insatisfeito. Se você estivesse realmente insatisfeito com tudo, não estaria buscando uma saída disso. A insatisfação que busca ser satisfeita logo encontra o que deseja em um tipo qualquer de relacionamento, com posses, como uma pessoa ou com algum “ismo”.

“Já passei por tudo isso, mas estou completamente insatisfeito.”

Você pode estar insatisfeito com os relacionamentos externos, mas talvez busque algum apego psicológico que proporcione a satisfação total.

“Também já passei por isso, mas ainda estou insatisfeito.”

Pergunto-me se você realmente está. Se estivesse totalmente descontente não haveria um movimento em qualquer direção em particular, haveria? Se você está completamente insatisfeito na mesma sala, você não busca uma sala maior com móveis mais bonitos; mas esse desejo de encontrar uma sala melhor é o que você chama de insatisfação. Você não está insatisfeito com todas as salas, mas somente com essa específica, da qual você quer fugir. Sua insatisfação surge de não ter encontrado a satisfação completa. Você, de fato, busca satisfação, então constantemente procura, julga, compara, pondera, rejeita; e, naturalmente, você está insatisfeito. Não é isso?

“Parece que sim, não é?”

Então você não está na verdade insatisfeito; simplesmente você até agora não foi capaz de encontrar a satisfação total e duradoura em nada. É isso que você quer: satisfação completa, algum contentamento interior profundo que perdure.

“Mas eu quero ajudar, e esse descontentamento me impede de me doar a isso completamente.”

Sua meta é ajudar e encontrar completa gratificação nisso. Você realmente não quer ajudar, mas encontrar satisfação em ajudar. Você procura por satisfação na ajuda, outro procura por ela em algum “ismo” e ainda outro em algum tipo de vício. Você procura por uma droga que satisfaça totalmente, que por ora chama de ajudar. Na busca de se preparar para ajudar, você espera ser completamente gratificado. O que você realmente quer é autogratificação duradoura.

Com a maioria, o descontentamento encontra um contentamento fácil. O descontentamento é logo anestesiado; ele rapidamente é drogado, silenciado e transformado em respeitável. Exteriormente, você pode ter acabado com todos os “ismos”, mas psicologicamente, bem no fundo, você busca algo a que possa se prender. Você diz que terminou com todos os relacionamentos pessoais com terceiros. Pode ser que não tenha encontrado gratificação duradoura nos relacionamentos pessoais e assim busque um relacionamento com uma ideia, que é sempre projetada. Na busca por um relacionamento completamente gratificante, por um refúgio seguro que resista a todas as tormentas, você não perde a própria coisa que traz contentamento? Contentamento talvez seja uma palavra feia, mas contentamento real não subtende estagnação, reconciliação apaziguamento, insensibilidade. Contentamento é o entendimento do que é, e o que é não é jamais estático. A mente que interpreta, que traduz o que é, esta presa em seu próprio preconceito de satisfação. Interpretação não é entendimento.

Com o entendimento do que é vem o amor inesgotável, a ternura, a humildade. Talvez seja isso que você busque; mas isso não pode ser buscado e encontrado. Faça o que fizer, nunca o encontrará. Existirá quando toda a busca chegar ao fim. Você só pode buscar aquilo que já conhece, que é mais gratificação. Buscar e observar são dois processos diferentes; um é tolhimento e o outro produz entendimento. A busca, tendo sempre um fim em vista, é sempre tolhimento; a vigilância passiva traz entendimento do que é de momento a momento. No que é de momento a momento há sempre fim; na busca há continuidade. A busca jamais pode encontrar o novo; somente no fim existe o novo. O novo e inexaurível. Só o amor é sempre renovador.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – volume 1 /Jiddu Krishnamurti.  Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

2 comentários:

  1. Caro Roberto,

    Dos textos que já postou, este é o mais incognoscível. Tem que ser degustado lentamente, para que se possa saboreá-lo por completo, percebendo todos seus sutis aromas.

    Excetuando o final, neste momento não tenho condições de avaliar seu conteúdo enigmático.

    Grande abraço.

    Luiz Otávio

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    1. Luiz, bons dias!

      Realmente, alguns textos de JK, por vezes, se apresentam incognóscíveis a nossa razão. Não sei se o problema é de tradução, se a dificuldade é nossa, se o entendimento ocorre por outra via ou é porque o JK que complica nas suas manifestações.

      Vou lhe enviar por e-mail o texto completo. Embora não saiba se a leitura dele completo o tornará mais cognoscível.

      Um abração,

      Roberto Lira

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