segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Carma


Jiddu Krishnamurti (*)


O SILÊNCIO NÃO É para ser cultivado, não é para ser deliberadamente produzido; não é para ser buscado, racionalizado ou meditado. O cultivo deliberado do silêncio é como a satisfação de um prazer há muito desejado; o desejo de silenciar a mente é apenas a busca de sensação. Esse silêncio é somente uma forma de resistência, um isolamento que leva a deterioração. O silêncio que é comprado é uma coisa de mercado no qual há o ruído da atividade. O silêncio vem com a ausência do desejo. O desejo é ágil, astuto e profundo. A recordação interrompe a varredura do silêncio, e uma mente presa na experiência não pode estar silenciosa. O tempo, o movimento de ontem desaguando no hoje e no amanhã, não é silêncio. Com o cessar desse movimento, há silêncio, e só então aquilo que é inefável pode tomar forma.
 

“Eu vim para falar sobre carma. Claro que tenho algumas opiniões sobre isso, mas gostaria de conhecer as suas”.

Opinião não é verdade; devemos por de lado as opiniões para encontrar a verdade. Existem inúmeras opiniões, mas a verdade não é deste ou daquele grupo. Para o entendimento da verdade, todas as ideias, conclusões e opiniões precisam cair como as folhas secas de uma árvore. A verdade não é para ser encontrada em livros, em conhecimento, na experiência. Se você estiver buscando opiniões, não encontrará nenhuma aqui.

“Mas podemos conversar sobre carma e tentar entender sua importância, não?”

Isso, claro, é um assunto muito diferente. Para entender, as opiniões e as conclusões precisam cessar.

“Por que você insiste nisso?”

Você conseguirá entender algo se já tiver decidido sobre isso ou se repetir as conclusões de outra pessoa? Para encontrar a verdade desse assunto, não devemos abordá-lo de uma nova maneira, com uma mente que não esteja envolta em preconceitos? O que é mais importante: estar livre de conclusões, de preconceitos, ou especular sobre alguma abstração? Não é mais importante encontrar a verdade do que discutir sobre o que é a verdade? Não é importante descobrir a verdade com respeito ao carma? Ver o falso como o falso é começar a entender isso, não é? Como podemos ver a verdade ou o falso se nossa mente está firmemente entrincheirada na tradição, nas palavras e nas explicações? Se a mente estiver amarrada a uma crença, como ela poderá ir longe? Para viajar para longe, a mente precisa estar livre. A liberdade não é algo a ser obtido no final de um longo esforço; ela deve estar logo no início da viagem.

“Quero descobrir o que carma significa para você?”

Senhor, vamos fazer a viagem de descobrimento juntos. Simplesmente repetir as palavras de outra pessoa não tem muita importância. É como tocar um disco. A repetição ou imitação não produz liberdade. O que você quer dizer com carma?

“É uma palavra em sânscrito que significa fazer, ser, agir e assim por diante. Carma é ação, e ação é o resultado do passado. A ação não pode existir sem o condicionamento da formação. Por meio de uma série de experiências do condicionamento e do conhecimento, a formação da tradição é construída, não apenas durante a vida atual do indivíduo e do grupo, mas por meio de muitas encarnações. A constante ação e interação entre a formação, que é o “eu”, e sociedade, a vida, é o carma; e o carma cria um compromisso moral para a mente, o “eu”. O que fiz em minha vida passada, ou mesmo ontem, continua valendo e me molda, proporcionando-me dor ou prazer no presente. Há o carma de grupo ou coletivo e o individual. Tanto o de grupo quanto o individual estão contidos na cadeia de causa e efeito. Haverá sofrimento ou alegria, castigo ou recompensa, de acordo com que fiz no passado”.

Você diz que a ação resulta do passado. Essa ação não é ação absolutamente, mas apenas uma reação, não é? O condicionamento, a formação, reage a estímulos; essa reação é a resposta da memória, que não é ação, mas carma. No momento, não estamos preocupados com o que é ação. Carma é a reação que surge de certas causas e produz certos resultados. Carma é essa cadeia de causa e efeito. Basicamente, o processo do tempo é carma, não é? Desde que haja um passado, deve haver o presente e o futuro. Hoje e amanhã são os efeitos de ontem; ontem em conjunção com hoje cria o amanhã. Carma conforme é entendido de modo geral, é o processo de compensação.

“Como diz, carma é um processo do tempo, e a mente é resultado do tempo. Somente uns poucos afortunados podem escapar das garras do tempo; o restante de nós está unido ao tempo. O que fizemos no passado, bem ou mal, determina o que somos no presente.”

A formação, o passado, é um estado estático? Não está passando por modificações constantes? Você não é o mesmo hoje do que era ontem; tanto fisiológica quanto psicologicamente, há uma mudança constante acontecendo, não é?

“Claro.”

Então, a mente não é um estado fixo. Nossos pensamentos são transitórios, continuamente em mudança; eles são a resposta da formação. Se eu for criado em determinada classe social, em uma cultura definida, responderei aos desafios, aos estímulos, de acordo com meu condicionamento. Com a maioria de nós, esse condicionamento está tão enraizado que a resposta é quase sempre segundo o padrão. Nossos pensamentos são a resposta da formação. Nós somos a formação; esse condicionamento não está separado nem é dessemelhante de nós. Com a mudança da formação, nossos pensamentos também mudam.

“Mas, certamente, o pensador é totalmente diferente da formação, não é?”

Será? O pensador não é o resultado dos pensamentos dele? Ele não é composto de seus pensamentos? Há uma entidade separada, um pensador separado de seus pensamentos? O pensamento não criou o pensador, não deu a ele permanência no meio da impermanência dos pensamentos? O pensador é o refúgio do pensamento e se coloca em níveis diferentes de permanência.

“Percebo que isso é assim, mas é realmente um choque para mim perceber os truques que o pensamento está usando com ele mesmo.”

O pensamento é a resposta da formação, da memória; a memória é o conhecimento, o resultado da experiência. Essa memória, por meio de mais experiências e respostas, torna-se mais forte, maior, mais aguçada, mais eficiente. Uma forma de condicionamento pode ser substituída por outra, mas ainda será condicionamento. A resposta desse condicionamento é carma, não é? A resposta da memória é chamada de ação, mas ela é apenas reação; essa “ação” gera mais reação e assim há a suposta cadeia de causas e efeitos. Mas a causa também não é o efeito? Nem causa nem efeito são estáticos. Hoje é o resultado de ontem, e hoje é a causa de amanhã; o que foi a causa torna-se o efeito, e o efeito, a causa. Uma deságua na outra. Não existe um momento em que a causa não seja também o efeito. Somente o especializado é fixo em sua causa e, portanto, em seu efeito. O fruto do carvalho não pode tornar-se outra coisa que não seja um carvalho. Na especialização, há morte; mas o homem não é uma entidade especializada, ele pode ser o que desejar. Ele pode abrir caminho através de seu condicionamento – e ele precisará fazer isso, se quiser descobrir o real. Você precisa cessar de ser um suposto brâmane para perceber Deus.

O Carmo é um processo do tempo, o passado movendo-se pelo presente para o futuro; essa cadeia é o modo de pensar. O pensamento é o resultado do tempo, e só pode existir aquilo que é imensurável, eterno, quando o processo do pensamento cessa. A quietude da mente não pode ser induzida, não pode ser produzida por meio de uma prática ou disciplina. Se a mente for tornada quieta, então o que quer que chegue a ela será apenas uma autoprojeção, a resposta da memória. Com a compreensão do condicionamento da mente, com a conscientização sem escolha das próprias respostas dela como pensamentos e sentimentos, a tranquilidade chega à mente. Essa quebra da cadeia do carma não é uma questão de tempo; pois, por meio do tempo, o eterno não existe.

O carma precisa ser entendido como um processo total, não apenas como algo do passado. O passado é tempo, que também é o presente e o futuro. Tempo é memória, palavra, ideia. Só quando a palavra, o nome, a associação e a experiência não existem é que a mente está quieta, não só nas camadas superficiais, mas completa e integralmente.


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era 2009

2 comentários:

  1. Bom dia Roberto,

    Realmente inefável, o conceitos abordados por JK são por demasiado complexos, embora consiga compreender os mecanismos, essa abordagem de carma destrói o conceito comum de carma, que normalmente é atrelado ao passado. Partindo do conceito que o hoje é a consequência do ontem e causa do amanhã.

    Assim como a semente do carvalho, condenada a sua condição, penso que também é difícil não tornar-se uma árvore.

    Conhecer a atuação dos pensamentos é bom, sua permanência não, mas anulá-los completamente para se alcançar o silêncio no estado de vigília física ordinária é muito complexo. Como fazê-lo? Como poderemos estar cientes de si mesmos, verdadeiramente conscientes, se devemos instituir o vazio e calar nosso cérebro?

    Entendo que enquanto estivermos vivos, nosso espírito dependerá dele e de sua limitações para se manifestar no mundo material.

    Qual seria a valia das percepções e do conhecimento?

    Talvez realmente não possa ser descrito pelas palavras, assim como os sentimentos, que são, sem nunca ter sido, constituindo-se do verso e do reverso, basicamente contraditórios, configurando-se naquilo que só poderia ser consentido, após ter experimentado.

    JK nos impõe uma encruzilhada de caminhos convergentes, inicialmente aparentam ser utopias, mas como alguns sonhos que devem ser perseguidos para se tornarem realidade, para mim a compreensão também não é imediata, pressupõe a atuação do tempo para ser refinada, "digerida", para que se possa "degustá-la".

    Grande abraço,

    Luiz Otávio

    ps. semana passada foi muito tumultuada, mas estou preparando um texto para o blog.


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    1. Boas tardes Luiz!

      É caro compartilhador, anular os pensamentos e alcançar o silêncio interior é como diz o ditado: rapadura é doce, mas não é mole não. E, para complicar mais o problema, JK afirma que não há um “como”. Assim, deixar de nominar, de associar e abandonar nosso passado psicológico, segundo ele, é a única forma de aquietar integralmente a mente. Mesmo isso parecendo ser uma utopia, essa é uma das utopias que me empenho para constituir na minha vida (não é por acaso que o objetivo do blog Ilha de Pala é: Compartilhar Ideias, Reflexões e Utopias).

      Juntando tudo do que já li de JK sobre essa questão, eu resumiria minha compreensão na perseguição dessa utopia como: estar integral e passivamente atento em cada relacionamento. E, para não me tornar uma árvore sempre que possível, disparo o meu “gatilho”:
      PROCURO SER
      UMA METAMOFORSE AMBULANTE,
      SEM AQUELA VELHA OPINIÃO FORMADA...

      Abração,

      Roberto Lira.

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