segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O indivíduo e a sociedade


Jiddu Krishnamurti (*)

 

CAMINHÁVAMOS POR UMA RUA movimentada. As calçadas estavam apinhadas de pessoas e o cheiro dos canos de descarga dos carros e ônibus enchiam nossas narinas. As lojas exibiam muitos artigos caros e também de qualidade inferior. O céu trazia uma clara cor prateada e foi agradável entrar no parque ao deixarmos a rua de trânsito pesado. Adentramos mais no parque e nos sentamos.

Ele dizia que o Estado, com sua militarização e legislação, estava absorvendo o indivíduo quase em toda parte, e que a veneração ao Estado agora tomava o lugar da veneração a Deus. Na maioria dos países, o Estado estava penetrando na própria intimidade da vida de seu povo; o Estado dizia o que deviam ler e o que deviam pesar. O Estado espionava seus cidadãos, mantendo uma vigilância divina sobre eles, assumindo a função da Igreja. Era a nova religião. O homem costumava ser um escravo da Igreja, mas agora e um escravo do Estado. Antes era a Igreja, agora era o Estado a controlar sua educação; e nenhum dos dois estava interessado na libertação do homem.

Qual é o relacionamento do indivíduo com a sociedade? Obviamente, a sociedade existe para os indivíduos, não o contrário. A sociedade existe para a fruição do homem; existe para dar liberdade ao indivíduo, para que ele possa ter a oportunidade de despertar a inteligência superior. Essa inteligência não é o simples cultivar de uma técnica ou do conhecimento; é estar em contato com aquela realidade criativa que não pertence à mente superficial. A inteligência não é um resultado cumulativo, mas uma libertação da realização e do sucesso progressivos. A inteligência jamais é estática; ela não pode ser copiada e padronizada, e portanto não pode ser ensinada. A inteligência é descoberta na liberdade.

A vontade coletiva e sua ação, que é a sociedade, não oferece essa liberdade para o indivíduo; pois a sociedade, não sendo orgânica, é sempre estática. A sociedade é composta e estruturada para a conveniência do homem; ela não tem um mecanismo independente próprio. Os homens podem capturar a sociedade, guiá-la, moldá-la, tiranizá-la dependendo de seus estados psicológicos, mas a sociedade não é o senhor do homem. Ela pode influenciá-lo, mas o homem sempre a desmonta. Existe conflito entre o homem e a sociedade porque o homem está em conflito consigo mesmo; e o conflito é entre aquilo que é estático e aquilo que é dinâmico. A sociedade é a expressão exterior do homem. O conflito entre ele e a sociedade é o conflito que existe nele mesmo. Esse conflito, externo e interno, sempre existirá, até que a inteligência superior seja despertada.

Nós somos tanto entidades sociais quanto indivíduos; somos cidadãos assim como homens, tornando-nos isolados em dor e prazer. Para haver paz, temos de entender o relacionamento correto entre o homem e o cidadão. Claro, o Estado preferiria que fôssemos unicamente cidadãos; mas essa é a estupidez dos governos. Nós mesmos gostaríamos de entregar o homem ao cidadão; pois é mais fácil ser um cidadão do que um homem. Ser um bom cidadão é funcionar eficientemente dentro do padrão de uma dada sociedade. A eficiência e a conformidade são exigidas do cidadão, pois elas endurecem-no, tornam-no cruel; e depois ele é capaz de sacrificar o homem pelo cidadão. Um bom cidadão não é necessariamente um bom homem; mas um bom homem está fadado a ser um cidadão correto, não de alguma sociedade ou país em particular. Como ele é principalmente um bom homem, seus atos não serão anti-sociais, ele não estará contra um outro homem.  Ele viverá em cooperação com outros homens bons; ele não buscará autoridade, pois ele não tem autoridade; ele será capaz da eficiência, sem a sua crueldade. O cidadão tenta sacrificar o homem; mas o homem que está buscando a inteligência superior naturalmente evitará a estupidez do cidadão. Assim, o Estado será contra o homem bom, o homem de inteligência; mas esse homem estará livre de todos os governos e nações.

O homem inteligente produzirá uma boa sociedade; mas o bom cidadão não dará origem a sua sociedade em que o homem possa ter uma inteligência mais elevada. O conflito entre o cidadão e o homem será inevitável se o cidadão predominar; e qualquer sociedade que deliberadamente negligencie o homem estará condenada.  Só existe a conciliação entre o cidadão e o homem quando o processo psicológico do homem for entendido. O Estado e a sociedade atual não estão interessados no homem interior, mas somente no homem exterior, o cidadão. Ele pode rejeitar o homem interior, mas ele sempre supera o exterior, destruindo os planos astutamente tramados pelo cidadão. O Estado sacrifica o presente pelo futuro, sempre resguardando-se para este; ele considera o futuro completamente importante, não o presente. Mas para o homem inteligente o presente é da mais alta importância; o agora e não o amanhã. O que é só pode ser entendido com o desaparecimento do amanhã. O entendimento do que é efetua a transformação no presente imediato. É essa transformação que é de importância suprema e não como conciliar o cidadão com o homem. Quando essa transformação acontece, o conflito entre o homem e o cidadão cessa.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – volume 1 /Jiddu Krishnamurti.  Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

 

3 comentários:

  1. Boa noite Roberto,

    Neste texto o otimismo de JK se sobressai em seu início de forma sutil, mas surpreendente, para um homem de opiniões tão ponderadas. Digo otimismo, porque entendo que o homem, ao seu jeito, vem se desdobrando para servir a dois senhores, neste caso, o estado e a religião.

    Bem sabemos que cachorro que tem dois donos morre de fome. E muitos "cães" humanos já estão ou acabarão mortos pela fome do espírito, desnutridos de seu alimento mais rico, a liberdade de pensar que tanto anseiam, desconhecendo como poderiam cultivá-la, e enfim, saciar a sua fome.


    Em tempos de Internet a vigilância se torna ainda mais ostensiva, há alguns anos atrás o
    máximo que a intrusão alcançava era a tela dos televisores que invadiam nossas casas levando todo tipo de informações, boas ou ruins. Agora a coisa se tornou mais profissional, a propagação de qualquer impostura se torna mais eficiente, é interativa, facilitando a manipulação e a propagação das idéias parametrizadas de acordo com as necessidades sociais e religiosas de cada povo. Também ficou mais fácil identificar os subversivos, que atentam contra o estado de direito e aos bons costumes, tentando desvelar o manto que encobre o embuste em que se vive.

    Outra surpresa de JK foi o uso do termo "despertar a inteligência superior", que remeteu-me ao passado recente que vivenciei. Hoje me soa tão artificial, tão doutrinário. Águas passadas.

    Embora tenha conseguido alguma liberdade, ainda experimento o conflito, que de alguma forma me mantem desperto.

    Certamente o estado, as convenções sociais e as religiões não se interessam pelo homem interior, não posso falar de outros países, mas sou capaz de perceber que nossa educação "laica", deveria aprofundar aspectos mais relacionados a natureza humana, talvez incentivando a leitura de certas obras ou mesmo o estudo da filosofia. Tive alguma sorte por nascer inquieto, nunca me contentei com as verdades "reveladas", caso contrário poderia ser mais um a fazer parte do rebanho, sendo pastoreado e conduzido ao bel prazer da vontade alheia. Sempre me pergunto quando estas pessoas vão acordar para realidade, que não são "animais" para serem pastoreados, e podem fazer ruir este sistema perverso de dominação, inculcado na mente das pessoas desde pequenas e infefesas, tornando-se adultos mansos, crédulos e conformados, como ovelhas que aguardam por mais um dia em suas vidas.

    Todas controvérsias que afloram dos escritos de JK, provocam uma boa e profunda reflexão, não sei a quantas anda minha transformação, mas não é importanto o compasso dessa mudança, me importa que ela não pare, e então, quem sabe, o conflito cessará.

    Um grande abraço,

    Luiz Otávio

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  2. Dileto Luiz, bons dias, boas tardes e boas noites!

    “Ói Nóis Aqui Traveis” com JK na parada, digo na peleia.

    Vou começar trazendo uma informação sobre esses textos do JK intitulados “Comentários sobre o viver”. Como você já deve ter percebido, esses breves textos foram publicados em três volumes reunindo reflexões de JK, onde cada capítulo parece ser uma conversação com um ou mais interlecutor(es. Para mim, esses textos retratam “a vida como ela é” (não a de Nelson Rodrigues) e/ou como pudesse ser. Outro detalhe que eu levo em conta nas minhas leituras é que, mesmo sendo uma trilogia, os textos foram traduzidos, em cada volume, por tradutores diferentes. Tendo isso em vista, penso que por vezes a tradução de alguns termos não é coerente com a essência do pensamento de JK. Por isso, termos como “despertar a inteligência superior” pode mesmo nos surpreender quando cotejamos com outras manifestações de JK. Observo que ele sempre nos adverte da necessidade de ficarmos realmente despertos, mas não com a conotação de que seremos uma casta superior, como algumas doutrinas propõem. Para mim, o termo “inteligência”, nessa manifestação dele (JK), sugere algo como: fundir-se com a infinute da verdadeira essência da vida. Assim, o termo “inteligência superior” pode ser entendido como algo está além do viver comum, do viver condicionado, do viver com a inteligência limitada.

    Seria esse o sentido da manifestação de JK? Não sei, mas como vejo as manifestações de JK com otimismo, fico com essa compreensão. Como um contumaz otimista em relação às manifestações do JK, o otimismo sutil dele no texto em pauta, bem observado por você, para mim funciona como um alento para o possível retorno da trajetória humana para o próprio interior.

    Quanto ao desdobramento (condicionamento) do homem para servir a dois senhores (estado e/ou religião), com certeza é o fato concreto que levou a humanidade a se desviar do caminho natural em sua trajetória. E nesse desvio, como você também observou, não tem alimento nenhum para nossa verdadeira essência. Assim, prefiro aderir às dietas alimentares alternativas em beneficio do corpo físico e, por outro lado, me fartar (ad libitum) na "mesa interior" com alimento para o que chamamos de espírito.

    Falando seriamente (kkkkk) da sua transformação, penso que se você estivesse conversando tranquilamente, num fim de tarde, debaixo de uma frondosa árvore com JK, ele te diria: amigo LORG não se preocupe como anda sua transformação, essa avaliação não é importante, o importante e acompanharmos nossas ações passivamente, momento a momento, e com certeza o conflito cessará.

    Abração,

    Roberto Lira

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