Jiddu
Krishnamurti (*)
O
AVIÃO ESTAVA LOTADO. Voava a mais de seis mil metros sobre o Atlântico e havia
um grosso tapete de nuvens abaixo dele. O céu acima era intensamente azul, o
sol estava por trás de nós e voávamos em direção ao oeste. As crianças tinham
brincado, correndo de um lado para o outro no corredor, e agora, cansadas,
dormiam. Após a longa noite, todos os outros estavam acordados, fumando e
bebendo. Um homem em frente contava a outro sobre seus negócios, e uma mulher
no assento detrás descrevia em voz agradável as coisas que comprara e
especulava sobre o valor do imposto que teria de pagar. Naquela altitude, o voo
era tranquilo, não havia solavancos, apesar dos ventos fortes abaixo de nós. As
asas do avião brilhavam na clara luz do sol e as hélices giravam suavemente,
cortando o ar em uma velocidade fantástica; o vento estava por trás de nós e
estávamos fazendo mais de 450km/h.
Dois homens do outro lado do estreito corredor
conversavam bem alto, e era difícil não ouvir o que eles diziam. Eram homens
grandes, e um tinha o rosto vermelho, castigado pelo clima. Ele explicava o
comércio de matar baleias, como era arriscado, o lucro que havia nisso e como
os mares eram assustadoramente bravios. Algumas baleias pesavam centenas de
toneladas. As mães com filhotes não deviam ser mortas, nem eles tinham
permissão de matar mais do que um certo número de baleias em um período
específico. O abate desses grandes monstros parecia ser elaborado com muito
conhecimento científico, cada grupo tendo um trabalho especial para fazer pelo
qual era tecnicamente treinado. O cheiro do navio-fábrica era quase
intolerável, mas as pessoas se acostumavam com isso, como se acostumavam com
quase tudo. Mas havia uma grande quantidade de dinheiro nisso se tudo corresse
bem. Ele começou a explicar a estranha fascinação de matar, mas naquele momento
foram servidas as bebidas e o assunto mudou de rumo.
Os homens gostam de matar, quer seja um ao outro ou
um cervo inofensivo, com olhos arregalados, no meio da floresta, ou um tigre
que atacou o gado. Uma cobra é deliberadamente atropelada na estrada; uma
armadilha é montada para um lobo ou um coiote ser apanhado. Pessoas bem
vestidas, rindo, saem com suas preciosas armas e matam pássaros que pouco antes
piavam uns para os outros. Um menino mata um gaio chilreante com sua espingarda
de ar comprimido, e os velhos à sua volta nunca dizem uma palavra de lamento
nem ralham com ele; pelo contrário, dizem que bom atirador ele é. Matar pelo chamado esporte, por alimento,
pelo seu país, pela paz – não há diferença em tudo isso. Justificativa não é a
resposta. Só existe; não mate. No Ocidente, achamos que os animais existem para
o bem de nossos estômagos, para o prazer de matar ou por suas peles. No
Oriente, é ensinado há séculos e repetido por cada pai: não mate, seja piedoso,
seja compassivo. Aqui, os animais não têm alma, então eles poder ser mortos com
impunidade; lá, os animais têm alma, portanto reflita e deixe seu coração
conhecer o amor. Comer animais, pássaros, é considerado aqui uma coisa natural,
normal, sancionada pela Igreja e pelos anúncios; lá não é, e os sensatos, os
religiosos, por tradição e cultura, nunca fazem. Mas isso também está
rapidamente desmoronando. Aqui sempre matamos em nome de Deus e do país, e
agora está em toda parte. O ato de matar está disseminado; quase da noite para
o dia, as culturas antigas estão sendo varridas para o lado e a eficiência, crueldade
e os meios de destruição estão sendo cuidadosamente alimentados e fortalecidos.
A paz não está com o político ou com o padre, nem
está com o advogado ou com o policial. A paz é um estado de espírito quando
existe amor.
Ele era um homem de uma pequena empresa, lutava mas
conseguia viver com o que ganhava.
“Eu não vim falar sobre meu trabalho”, disse. “Ele
me proporciona o que preciso, e como minhas necessidades são poucas, estou bem.
Não sendo superambicioso, não estou no jogo da competição ferrenha. Um dia,
quando estava passando, vi uma multidão embaixo das árvores e parei para
ouvi-lo. Isso foi há uns dois anos, e o que você disse fez surgir uma
inquietação em mim. Não sou culto, mas agora leio suas palestras e aqui estou.
Eu costumava estar contente com minha vida, com meus pensamentos e com as
poucas crenças que estavam pousadas levemente em minha mente. Mas, desde aquela
manhã de domingo, quando vagava por este vale no meu carro e vim por acaso
ouvir você, tenho estado descontente. Não é tanto com meu trabalho que estou
descontente, mas o descontentamento tomou conta de todo o meu ser. Eu costumava
sentir pena das pessoas que eram descontentes. Elas eram tão infelizes, nada as
satisfazia – e agora entrei para essa categoria. Eu já estive satisfeito com
minha vida, com meus amigos e com as coisas que estava fazendo, mas agora estou
desconte e infeliz.”
Se posso perguntar, o que quer dizer com a palavra
“descontente”?
“Antes daquela manhã de domingo, quando eu o ouvi,
era um indivíduo contente, e suponho que um tanto aborrecido para outros; agora
vejo como era estúpido e estou tentando ser inteligente e alerta a tudo à minha
volta. Quero chegar a algo, chegar em algum lugar, e esse anseio naturalmente
causa descontentamento. Eu costumava estar adormecido, se posso dizer assim,
mas agora estou acordando.”
Você está acordando ou está tentando por a si mesmo
para dormir novamente pelo desejo de se tornar algo? Você diz que estava
dormindo, e que agora você está acordado; mas esse estado desperto o torna
descontente, o que o desagrada, causa-lhe dor, e para fugir dessa dor você está
tentando tornar-se algo, seguir um ideal e assim por diante. Essa imitação está
pondo você para dormir novamente, não está?
“Mas não quero voltar a meu velho estado, quero
realmente ficar acordado.”
Não é muito estranho como a mente se engana? A mente
não gosta de ser perturbada, ela não gosta de ser sacudida de seus antigos
padrões, seus hábitos confortáveis de pensamento e ação; sendo perturbada, ela
procura meios e maneiras de estabelecer novos limites e pastos nos quais possa
viver com segurança. É essa zona de segurança que a maioria de nós está
buscando, e é o desejo de estar seguro, de estar protegido, que nos põe para
dormir. As circunstâncias, uma palavra, um gesto, uma experiência, podem nos
acordar, nos perturbar, mas queremos ser postos novamente para dormir. Isso
está acontecendo com a maioria de nós o tempo todo, e não é um estado desperto.
O que temos de entender são os meios pelo quais a mente se põe para dormir. É
isso, não é?
“Mas deve haver um grande número de meios pelos
quais a mente se põe para dormir. É possível conhecer e evitar todos eles?”
Vários podem ser indicados; mas isso não resolveria
o problema, não é?
“Por que não?”
Simplesmente aprender os meios pelos quais a mente
se põe para dormir é novamente encontrar um meio, talvez diferente, de não ser
perturbado, de estar protegido. A coisa importante é manter-se acordado e não
perguntar como se manter acordado; a
busca do “como” é o anseio de estar seguro.
“Então, o que se pode fazer?”
Ficar com o descontentamento sem desejar
pacificá-lo. É o desejo de não ser perturbado que precisa ser entendido. Esse
desejo, que assume muitas formas, é o anseio de fugir do que é. Só quando esse anseio desaparece –
mas não por meio de qualquer forma de compulsão consciente ou inconsciente é
que a dor do descontentamento cessa. Comparar o que é com o que deveria ser
traz dor. A cessação da comparação não é um estado de contentamento; e um estado
de vigília, sem as atividades do ser.
“Tudo isso é muito novo para mim. Parece-me que você
dá às palavras um significado diferente, mas a comunição só é possível quando nós
damos o mesmo significado à mesma palavra ao mesmo tempo.”
Comunicação é relacionamento, não é?
“Você pula para significados mais amplos que sou
capaz de entender. Eu preciso entrar mais profundamente nisso tudo e depois
talvez entenda.”
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos
– Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2009
Bom dias úmidos Roberto,
ResponderExcluirComo estão as coisas em Uberlândia, espero que mais secas que aqui. A prodigiosa chuva que rega as árvores e as plantas caiu incessante durante o sábado e o domingo passados. Pelo ao menos não causou muitos estragos por aqui.
Eis que voltamos as saudáveis peleias, depois de algum período de abstinência. Então vamos aproveitar o estimulo da saudade para confabularmos como não ser um sujeito normal e fazer tudo igual, como diria Raulzito.
Parafraseando Shakespeare, matar ou não matar eis a questão? Como sempre, admiro os textos de JK, que sempre me levantam uma série de questionamentos a respeito da "coisas da vida" e porque não dizer: da morte, absolutamente infalível e inquestionável. Aprendi a me reportar na natureza, sempre justa e correta em seus julgamentos, tão precisa na casualidade de suas reações que acabo mirando nela como reflexo do divino. Filosofias a parte, tenho minhas concepções a respeito da certeira morte. Entendo-a como um processo natural, mas admito que a irracional crueldade e a bestialidade humana são utilizadas como instrumentos da morte. De fato, existem bestas humanas que gostam de matar pelo simples prazer de matar, se é que existe algum prazer nisto. A morte, e tão inerente a vida, que os carnívoros dependem dela para viver, ou seja, matar para não morrer, então, mesmo que os animais tenham "alma" (gostaria de saber se no original está escrito "soul" ou "spirit"), alimentar-se deles, é natural.
Meu acupunturista, que também é médico, é bastante místico e intectualizado, nunca conversei com ele sobre JK, mas conhece muito
das culturas orientais, inclusive a indiana. Certa ocasião perguntei-lhe: Por que comia carne, quando sua dieta se aproximava muito da alimentação "vegana"? Ele me respondeu que o corpo físico precisa de nutrientes que são mais facilmente encontrados e assimilados, quando obtidos a partir de produtos de origem animal,
incluindo a carne. Ainda me explicou que precisaríamos de pastar um dia inteiro para que pudessemos suprir nossas necessidades proteicas. Bem, depois de tal resposta, refleti sobre o assunto e conclui que ainda temos dentes caninos, herdados de uma época que a caça ainda era comida crua. Sendo assim, o ser humano
é naturalmente onívoro e penso que no decorrer do tempo ele tenderá a substituir alimentos de origem animal por outros mais "puros" e menos nocivos a saúde e a própria natureza.
JK aproveitou a introdução e colocou o dedo na ferida, admitindo que obsurdo de matar em nome de "Deus", nada pode ser mais falacioso que isso. Essa muleta maldita que as imposturas utilizam para sacrificar vidas humanas em prol de uma luta inglória e nefasta, que infelizmente revela a estupidez e barbárie que ainda estamos inseridos denota que o processo de evolução do ser humano deverá ser bastante lento, espero profundamente estar errado.
Desta vez vou parafrasear Renato Russo e afirmar que vivo um "contentamento desconte" tentando me manter "lúcido e consciente", a rima foi proposital. Consegui aprender que a mente tem que ser chocalhada todos os dias. Amaldiço-o JK, já estou ficando torpe com tantos "chocalhões" para não "dormir no ponto" e aceitar o que sou, enquanto estou, para ser o que não sou, porque nunca serei quem sou. Parece até um niho de magagafos, mas é assim que me sinto hoje, "uma metamorfose ambulante". Essa é a vigília a que me propus fazer e que me traz algum alento, melhor dizendo, contento. Afinal, já sou capaz de digerir alguns textos de JK e perceber suas mensagens cifradas.
"Comunicação é relacionamento, não é?"
Um grande abraço,
Luiz Otávio
Prezado LORG, bons dias, boas tardes e boas noites!
ExcluirAqui em Berlândia uns dias chove, noutros dias bate sol. O importante é que a coisa aqui NÃO está preta, apesar de uns probleminhas nos últimos dias no meu PC, mas já solucionados.
Agora, vamos que vamos peleiar e matar a nossa fome com ou sem algumas proteínas de origem animal... kkkkkkkk!
Consinto com suas compreensões sobre a morte “como um processo natural” e “a irracional crueldade e a bestialidade humana são utilizadas como instrumentos da morte”. Também, consinto que seja natural como você diz, “os carnívoros dependem dela (da morte de outros animais) para viver”. Para mim independente de terem ou não “alma”.
Quanto à questão formulada para o acupunturista, médico, sobre comer carne; tenho algumas compreensões que consentem, mas também divergem da manifestação dele. Consinto quando ele diz que “o corpo físico precisa de nutrientes que são mais facilmente encontrados e assimilados, quando obtidos a partir de produtos de origem animal, incluindo a carne.” Discordo quando ele manifesta que “precisaríamos de pastar um dia inteiro para que pudéssemos suprir nossas necessidades protéicas”. Pois, entendo que conhecendo-se a composição dos alimentos podemos aportar os aminoácidos essências (para a síntese protéica) mesmo com uma alimentação “vegana”. Também, podemos suprir o referido aporte a partir de proteínas de origem animal, mas sem a necessária ou desnecessária ingestão de carne.
Minhas manifestações de concordância e/ou divergência sobre alimentação são provenientes de dois contextos. O primeiro, para mim menos relevante, tem base na minha formação acadêmica (fui professor de Nutrição Esportiva por uns vinte anos). O segundo contexto, para mim mais significativo, tem por base a experimentação de vários regimes alimentares. Vivenciei desde a alimentação onívora, passando pela alimentação macrobiótica (dos cozedores e pasteurizadores) até o crudivorismo (dos frugíveros e germinadores). Hoje, no convívio social pauto minha dieta na forma que denomino de “onívora ligth”. Quando estou me alimentando em casa faço ingestão de produtos integrais, quando possível cru e com a menor condição de industrialização. Também, não como carne vermelha, independente de qualquer coisa, o sabor não me agrada. Penso que o mais importante para cada individualidade, independentemente de qualquer filosofia, é observar o bem estar do organismo com a ingestão de determinado alimento.
(Devido a minha prolixidade, vai ser necessário uma complementação neste comentário - limitação de caracteres, fazer o quê?)
... continuação do comentário acima
ResponderExcluirQuanto a sua reflexão sobre os dentes caninos nos humanos como um indicativo dele ser naturalmente onívoro, há dúvidas! Alguns estudiosos questionam essa compreensão, justificando que nos humanos, tendo em vista o tamanho e formato, os dentes caninos não são compatíveis com os caninos de um verdadeiro animal onívoro. Estes apresentam os dentes caninos na forma de lança ou pá e funcionam para perfurar e rasgar suas caças. Salienta, ainda, que os animais verdadeiramente onívoros (urso, lobo, raposa, etc.) engolem os pedaços de sua caça sem mastigar; resolvendo o problema da digestão por meio da grande acidez estomacal que possuem para dissolver o alimento. Enquanto, os humanos possuem baixa acidez estomacal e necessitam mastigar bem os alimentos para sua digestão.
Para encerrar essa “comilança escrevinhatória”... kkkkkkk.. vamos digerir como sobremesa a questão de matar abordada por JK. Penso que essa questão de matar ou não matar é instigante. Sem sombra de dúvida matar por esporte, pelo país ou em nome de Deus não é justificável nem pode trazer contentamento a quem pretende ser humano. Matar por esporte, outros seres ditos inferiores, nos tempos atuais é uma crueldade, uma perversidade, uma barbaridade, uma maldade, em síntese, uma estupidez. Matar os semelhantes em nome do país ou de Deus é uma irracionalidade, uma animalidade, uma impiedade, em síntese, uma desumanidade. Compreendo que matar nas situações acima referidas é reprovável em quaisquer circunstâncias. Quanto a matar para comer, penso que estamos num “ponto de mutação”. O conhecimento vai nos conduzir, aqui no Ocidente, a compreensão que há séculos predomina no Oriente a não matar nem mesmo para comer. Quem viver verá...kkkkkkk!
Abração,
Roberto Lira
Bom dia Roberto,
ResponderExcluirMuito técnicas e elucidativas suas explicações, certamente você experimentou e talvez ainda experimente um caminho para uma alimentação saudável e natural. Também procuro manter uma dieta salutar, restringindo a ingestão de carboidratos e carnes vermelhas na medida do possível mas sem extremismos.
Me ocorre a pergunta me caro Roberto, reportando-me as suas origens, e admito que esporadicamente me dou a desfrute de apreciar uma carne de sol acebolada com macaxeira. Meu paladar é muito eclético e me permito a provar praticamente tudo que me é oferecido. Aprendi a gostar do sarapatel mas ainda não encontrei uma buchada boa, mas não perco as esperanças. O ato de comer é basicamente mais uma experiência que podemos aproveitara da vida entãop não me furto a experimentar, caso não goste do sabor, passo a evitá-lo, analogamente ao que fazemos com a vida.
Consinto que um dia, penso não muito distante, os seres humanos possam se alimentar muito bem, sem a necessidade da morte de outros seres. Também vejo a matança entre humanos, não importando em nome de quem seja, como uma atrocidade que atenta contra os princípios das Natureza, infelizmente, confirmando quão grande é o caminho que ainda temos a percorrer.
Grande Abraço,
Luiz Otávio