segunda-feira, 4 de novembro de 2013

TEMPO



Poema extraído do livro: Pensamento do Chão. Viviane Mosé, Ed.Record.



"Quem tem olhos pra ver o tempo

soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele

soprando sulcos?

O tempo andou riscando meu rosto

com uma navalha fina

sem raiva nem rancor

o tempo riscou meu rosto com calma

(eu parei de lutar contra o tempo ando exercendo instantes

acho que ganhei presença)

Acho que a vida anda passando a mão em mim.

A vida anda passando a mão em mim.

Acho que a vida anda passando.

A vida anda passando.

Acho que a vida anda.

A vida anda em mim.

Acho que há vida em mim.

A vida em mim anda passando.

Acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo é o tempo

na verdade faz tempo

mas eu escondia porque ele me pegava à força

e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse:

tempo se você tem que me comer

que seja com o meu consentimento

e me olhando nos olhos

Acho que ganhei o tempo

de lá pra cá ele tem sido bom comigo

dizem que ando até remoçando."





quarta-feira, 31 de julho de 2013

Deus segundo Spinoza


Certamente, Deus fala a cada um de seus filhos de acordo com o condicionamento deste. Meu condicionamento me induz a sentir as palavras de Deus como Spinoza o sentia. Por conseguinte fiquem com o filósofo holandês Baruch Spinoza: 

“Pára de ficar rezando e batendo o peito!

 O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti. 

 Pára de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. 

Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias.  

Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti. 

 Pára de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. 

O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer. 

Pára de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho... Não me encontrarás em nenhum livro! 

Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu trabalho?

Pára de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. 

Eu sou puro amor. 

Pára de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. 

Se Eu te fiz... Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. 

Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez? 

Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que tipo de Deus pode fazer isso? 

Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei; essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só geram culpa em ti. 

Respeita teu próximo e não faças o que não queiras para ti. 

A única coisa que te peço é que prestes atenção a tua vida, que teu estado de alerta seja teu guia. 

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é o único que há aqui e agora, e o único que precisas. 

Eu te fiz absolutamente livre.  Não há prêmios nem castigos.  Não há pecados nem virtudes.  Ninguém leva um placar.  Ninguém leva um registro. 

Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno. 

Não te poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso te dar um conselho. Vive como se não o houvesse. 

Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não há nada, terás aproveitado da oportunidade que te dei. 

 E se houver, tem certeza que Eu não vou te perguntar se foste comportado ou não. 

Eu vou te perguntar se tu gostaste, se te divertiste... Do que mais gostaste? O que aprendeste? 

Pára de crer em mim - crer é supor, adivinhar, imaginar. 

Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti. 

Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho no mar. 

Pára de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra tu acreditas que Eu seja? 

Me aborrece que me louvem. Me cansa que agradeçam. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. 

Te sentes olhado, surpreendido?... Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me louvar. 

Pára de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que te ensinaram sobre mim. 

A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo, e que este mundo está cheio de maravilhas. 

Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações? 

 Não me procures fora! Não me acharás. Procura-me dentro... aí é que estou, batendo em ti.”

Baruch Spinoza

Marcelo Gleiser, em sua coluna na Folha de São Paulo, manifestou que Einstein e Newton enxergavam Deus na Natureza e que estes pensavam a ciência como uma ponte entre a mente humana e a mente divina e, ainda, que adorar a Natureza, compreendê-la cientificamente, era uma atitude religiosa.
rjtl

segunda-feira, 29 de julho de 2013

O que você quer?

Jiddu Krishnamurti (*)
Segurança, felicidade, prazer
O que é que a maioria esta procurando? O que é que cada um de nós quer? Neste mundo inquieto, onde todos estão tentando encontrar algum tipo de paz, algum tipo de felicidade, um refúgio, é importante descobrir o que é que estamos tentando buscar, o que estamos tentando descobrir. Provavelmente, a maioria está buscando felicidade, paz. Penso que é isso o que a maioria quer. Então, começamos a buscar, passamos de um líder para outro, de uma organização religiosa para outra, de um mestre para outro.
Mas estamos procurando felicidade ou estamos em busca de satisfação de algum tipo, da qual esperamos extrair felicidade? Há uma diferença entre satisfação e felicidade. Você pode procurar felicidade? Talvez possa encontrar satisfação, mas de modo algum pode encontrar felicidade. Felicidade é derivativa, é um subproduto de alguma coisa. Então, antes de entregar a mente e o coração a algo que demande uma dose de dedicação, atenção, pensamento e cuidado, devemos descobrir o que é que estamos procurando, se é felicidade ou satisfação. Receio que muitos de nós estamos procurando satisfação. Queremos ficar satisfeitos, queremos encontrar uma sensação de plenitude ao fim de nossa busca.
Quem está buscando paz, pode encontrá-la muito facilmente. Podemos nos devotar cegamente a uma causa, uma idéia, e esse será nosso refúgio. No entanto, isso não resolve o problema. O mero isolamento no refúgio de uma idéia não nos liberta do conflito. Então, devemos descobrir o que é que queremos, interna e externamente. Se descobrimos isso, não precisamos ir a lugar algum, nem procurar um mestre, uma Igreja, uma organização. Dessa forma, nossa dificuldade reside em sabermos com clareza qual é nossa intenção, não é? Podemos saber com clareza? Isso vem através da busca, da tentativa de descobrir o que os outros dizem, desde o mais elevado mestre até o pregador comum da igreja ali na esquina? É preciso recorrer a alguém para descobrir? No entanto, é isso que estamos fazendo, não é verdade? Lemos inúmeros livros, participamos de muitas reuniões, discutimos, filiamo-nos a várias organizações, tentando achar um remédio para o conflito, para a infelicidade em nossas vidas. Ou, se não fazemos isso tudo, achamos que nossa busca chegou ao fim, isto é, dizemos que uma certa organização, ou determinado mestre, ou um livro específico nos satisfaz, que encontramos tudo o que queríamos; e assim permanecemos, cristalizados e encerrados.
Nós procuramos, no meio de toda essa confusão, algo permanente, duradouro, algo que possamos chamar de real, Deus, verdade, o que você queira, pois o nome não importa, a palavra, seguramente, não é a coisa que define. Então, não vamos nos enredar em palavras, deixemos isso para os oradores profissionais. A maioria busca por algo permanente. Algo a que possamos nos agarrar, algo que nos dê uma certeza, uma esperança, um entusiasmo duradouro, uma convicção que dure, porque, no íntimo, somos indecisos. Não conhecemos a nós  mesmos. Sabemos muito sobre fatos, sabemos o que os livros dizem, mas não sabemos por nós mesmos, não temos uma experiência direta.
E o que é que chamamos de permanente? O que é que estamos procurando, que nos dará ou que esperamos que nos dê permanência? Não estamos procurando felicidade, satisfação e certeza duradouras? Queremos algo que dure para sempre e que nos dê satisfação. Se nos despojarmos de todas as palavras e frases e realmente olharmos para esse algo, veremos o que queremos. Queremos prazer permanente...
A felicidade não pode ser perseguida
O que você quer dizer com “felicidade”? Alguns dirão que felicidade é ter o que se quer. Você quer um carro, consegue um, então é feliz. Eu quero roupas, quero ir à Europa, e se posso ir, fico feliz. Quero ser o maior político que já existiu e, se consigo, fico feliz, se não consigo, torno-me infeliz. Então, o que chamamos de felicidade é ter o que se quer, é realizar, alcançar sucesso, tornara-se nobre, conseguir qualquer coisa que se queira. Quando quer alguma coisa e pode tê-la, você se sente perfeitamente feliz, não sente nenhuma frustração.  Mas, se não pode ter o que quer, sua infelicidade começa. Todos nós nos preocupamos com isso, não só os ricos ou os pobres. Os ricos e os pobres, todos querem algo para si, para sua família, para a sociedade e, se são impedidos, tornam-se infelizes. Não estamos dizendo que os pobres não devem ter o que querem. O problema não é esse. Estamos tentando descobrir o que é felicidade e se ela é alguma coisa da qual estamos conscientes. Será felicidade aquele momento em que tomamos consciência de que somos felizes, que possuímos muito? Esse momento não é felicidade, é? Então, não podemos ir atrás da felicidade. No momento em que temos consciência de que somos humildes, não somos humildes. Portanto, felicidade não é algo que se persiga. Ela vem para nós. Mas, se a procurarmos, ela fugirá.
O segredo da felicidade é o autoconhecimento no relacionamento
Você já está se compreendendo através do espelho de seus próprios pensamentos, no espelho do relacionamento. Acredito que a felicidade está em nossas mãos, e que o segredo dela é o autoconhecimento – não o autoconhecimento de Freud, Jung ou Shankara, nem de outros, mas aquele que vem com as descobertas que fazemos em nosso relacionamento, dia após dia. É através da observação, da percepção, sem o esforço do pensamento dia após dia, quando estamos em um ônibus, ou viajando de carro, quando falamos com a esposa, com os filhos, com os vizinhos, é através da observação de tudo isso, como se  olhássemos num espelho, que começamos a descobrir como falamos, como pensamos e reagimos, e vemos que, nessa compreensão de nós mesmos, temos algo que não é encontrado em livros, filosofias, nos ensinamentos de nenhum guru.

(*)  Trechos do livro: O que você está fazendo com a sua vida? – Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2010

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ideologia

Roberto Lira

Neste final de semana, a revista ISTOÉ publicou uma entrevista com o escritor Luiz Fernando Veríssimo, onde as recentes manifestações espontâneas que se espalharam pelo Brasil são o foco das questões. O escritor avalia as manifestações como positivas, tendo em vista que os manifestantes “estão pedido tudo que a gente quer”. Quando perguntado quem é o inimigo dos jovens de agora ele manifesta: “Pois é, o inimigo é um sistema que não funciona, o que é muito vago. Se você quiser ser específico, pode dizer que a rua está fazendo a critica ao capitalismo brasileiro que o PT fazia quando era oposição, antes de se deixar cooptar. Mas isso é um diagnóstico ideológico e o movimento parece ser contra tudo. O inimigo é tudo, inclusive a ideologia.” (Grifo nosso).

Nos anos oitenta, a juventude fazia coro ao cantor Cazuza em seu hit musical “Ideologia”. Ele iniciava essa música com o lamento:
Meu partido
É um coração partido
E as ilusões estão todas perdidas.

Na época, eu não compartilhava desse lamento inicial do Cazuza, pois mantinha a esperança que o recém fundado Partido dos Trabalhadores (PT) concretizasse meus sonhos juvenis de ter um partido ético, ideologicamente voltado para o bem comum. Vinte anos depois, minhas ilusões nos partidos (como dizia o Cazuza) foram todas perdidas com a cooptação dos petralhas do PT ao modus operandi dos políticos em todos os tempos. Cazuza antecipou em sua música a minha desilusão política, quando dizia:
Os meus sonhos foram todos vendidos
Meus inimigos estão no poder.

Demorei a sentir e compartilhar a protestação do Cazuza. Os versos até aqui reproduzidos representam o sentimento da juventude de hoje e também os meus. Embora o  verso que finaliza o hit em pauta ao clamar: Ideologia, Eu quero uma pra viver, não represente o sentimento dos jovens de hoje, nem mais os meus. Por isso, passados quase trinta anos, eu reconsidero o clamor de outrora e hoje (imitando o Raulzito) quero dizer agora o oposto do que eu disse antes. Assim, grito em alto e bom tom:

Ideologia... NÃO quero uma pra viver.

O que me fez mudar no que diz respeito à busca por uma ideologia?  Não foi o sentimento de “inimigo de tudo”, que hoje se encontra nos jovens que se manifestam nas ruas, como frisou Luiz Fernando Veríssimo na entrevista acima referida. O que me fez reconsiderar sobre a questão de uma ideologia para se viver, foi à compreensão de que as ideologias sacrificam o homem do presente para salvar (?) o homem do futuro. Os idealistas nunca estão no presente. Para estes a vida é sempre no passado ou no futuro, nunca no agora. Assim, o presente representa apenas uma passagem para o futuro e por isso não é importante. Para os idealistas o caminhar não importa, o que importa é somente a meta final a ser alcançada. Desse modo o homem perde o presente, perde a sua vida. Só há um verdadeiro viver. Só há um modo correto de viver, é viver no aqui e agora, o resto é:

Ideologia... NÃO quero uma pra viver.


segunda-feira, 24 de junho de 2013

É hora da Educação

No momento em que a voz das ruas se manifesta de forma veemente sobre mais educação, penso ser muito oportuno repercutir o texto “É hora da educação”, do Marcelo Gleiser, publicado neste último domingo, 23/06/2013, na Folha de São Paulo. Esse texto expressa com propriedade, e de forma mais inteligível do sou capaz, o meu pensar e sentir sobre a questão da educação.

Marcelo Gleiser:

 “O Brasil acordou!" é o que temos ouvido, mesmo daqui dos EUA, sobre as manifestações no país. A mídia, como sempre, enfatiza a violência acima do que as pessoas nas ruas estão pedindo.

Na quinta, a primeira página do "New York Times" mostrou um guarda atingindo o rosto de uma senhora com um spray lacrimogêneo; pouco fala da insistência da maioria dos manifestantes em manter a ordem, dos esforços em abrir uma relação com a polícia que, como tantos já disseram, é povo e precisa de melhorias tanto quanto o resto.

Existe um contrato social e financeiro entre a população e o governo. A população, por meio dos impostos, paga o governo para exercer certas funções que deveriam garantir sua qualidade de vida: saúde, educação, segurança, transportes. Se a população não paga, o governo castiga com multas e prisão.

O que ocorre quando o governo não faz a sua parte e deixa de garantir a qualidade do tratamento médico, da educação pública, da segurança nas ruas e das fronteiras, dos transportes?

É óbvio que existe uma assimetria no poder: como o governo detém controle da polícia e das forças armadas, fica fácil coibir qualquer desavença. O que as pessoas talvez estejam começando a perceber é que também têm poder. O contrato deve ser mantido dos dois lados; sem dinheiro, o governo quebra.

Mas vamos ser positivos e imaginar que as manifestações tenham o efeito de redefinir as metas do governo para cumprir o seu lado do contrato. O que deve ser feito?

O desafio do Brasil é ser um país de dimensões continentais, com mais de 200 milhões de habitantes. Bem diferente da Suécia ou da Holanda. Temos uma economia baseada na agropecuária e mineração. Nada de errado nisso, mas é insuficiente no mundo de hoje, onde tecnologias digitais estão redefinindo como vivemos. Precisamos de energia sustentável, de infraestrutura de comunicação, de técnicos, engenheiros e cientistas que possam competir em pé de igualdade com os dos países que vemos como modelos.
Um exemplo simples: quais carros guiamos no Brasil? Alemães, americanos, japoneses e coreanos. O que isso nos diz? Que esses países têm um sistema de educação capaz de suprir a enorme demanda que uma tecnologia competitiva requer. Se o Brasil tem a intenção de competir nesse nível, tem de reformular o ensino público.

Imagine que a Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo em 1950, não muito diferente do Haiti. O que aconteceu? Fizeram da educação a área prioritária. Treinaram engenheiros, cientistas e médicos para levantar o país da miséria.

Não é falta de dinheiro. Em 2010, 4,3% do PIB foi investido em educação básica. O que falta? Treinamento de professores que então recebam salários dignos. Que jovem vai querer ser professor para ganhar R$ 1.200 por mês? Não basta apenas pôr as crianças nas escolas; o que fazem lá é essencial. Para isso, precisamos de professores bem treinados e de escolas com laboratórios, bibliotecas e computadores.

Sem uma profunda transformação na educação, o Brasil será passado para trás pelos países que já perceberam que sem um investimento sério na educação estão optando pela mediocridade.

(*) Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor, mais recentemente, de “Criação Imperfeita”. Escreve aos domingos na coluna “Ciência”, da versão impressa de Folha de São Paulo.



terça-feira, 11 de junho de 2013

Autoridade

Jiddu Krishnamurti (*)

AS SOMBRAS DANÇAVAM no gramado verde; e embora o sol estivesse quente o céu estava muito azul e claro. Do outro lado da cerca um vaca olhava para o gramado verde e para as pessoas. A reunião das pessoas lhe parecia estranha, mas a grama verde era familiar, embora as chuvas já tivessem passado há muito e o solo estivesse marrom-queimado. Um lagarto pegava moscas e outros insetos no tronco de um carvalho. As montanhas distantes estavam enevoadas e convidativas.
            Ela disse, sob as árvores, após a palestra, que viera para ouvir caso o mestre dos mestres falasse. Ela fora muito séria mas agora essa seriedade virara obstinação. Esta era disfarçada por sorrisos e por uma tolerância razoável, que havia sido muito cuidadosamente pensada e cultivada; era uma coisa da mente e, assim, podia inflamar-se em intolerância violenta e irritada. Ela era grande e insinuante; mas havia uma censura escondida, nutrida por suas convicções e crenças. Era reprimida e dura, mas havia se dedicado à irmandade e à sua boa causa. Acrescentou, após uma pausa, que saberia quando o mestre falasse, pois ela e seu grupo tinham um modo misterioso de sabê-lo, que não era facultado a outros. O prazer do conhecimento exclusivo era bastante óbvio na maneira como disse isso, pelo gesto e pela inclinação da cabeça.
            O conhecimento exclusivo, privado, oferece um prazer profundamente gratificante. Saber algo que os outros não sabem é uma fonte constante de satisfação; isso proporciona a alguém o sentimento de estar em contato com coisas mais profundas, que dão prestígio e autoridade. Se você está em contato direto, tem algo que os outros não têm, e assim você é importante, não só para si mesmo mas para os outros. Eles o admiram e respeitam, com um pouco de receio, pois querem compartilhar daquilo que você tem; mas você dá, sempre sabendo mais. Você é o líder, a autoridade; e essa posição vem facilmente, pois as pessoas querem ser controladas, conduzidas. Quanto mais temos consciência que estamos perdidos e confusos, mais ansiosos ficamos para sermos guiados e orientados; portanto, a autoridade é estabelecida em nome do Estado, em nome da religião, em nome de um mestre ou de um líder partidário.
            O culto a autoridade, seja em grandes ou pequenas coisas, é mau, pior ainda em assuntos religiosos. Não existe intermediário entre você e a realidade; e se houver um, ele é um deturpador, um enredador, não importa quem ele seja, se o mais elevado salvador ou seu mais recente guru ou mestre. Aquele que sabe, não sabe; ele só pode saber seus próprios preconceitos, suas crenças projetadas e demandas sensoriais. Ele não pode conhecer a verdade, o incomensurável. Posição e autoridade podem ser estabelecidas, habilmente cultivadas, não a humildade. A virtude proporciona liberdade; mas a humildade cultivada não é virtude, mas simples sensação e, portanto, prejudicial e destrutiva; ela é uma prisão, de onde se precisa escapar repetidamente.
            É importante descobrir não quem é o Mestre, o santo, o líder, mas por que você o segue. Você só segue para se tornar algo, para ganhar, para ter clareza. A clareza não pode ser dada por outro. A confusão está em nós; nós a criamos e temos de removê-la. Podemos alcançar uma posição gratificante, uma segurança interna, um lugar na hierarquia da fé organizada; mas todas são atividades autolimitantes que levam a conflitos e sofrimentos. Você pode sentir-se momentaneamente feliz em sua realização, persuadir-se de que sua posição é inevitável, de que é seu destino; mas enquanto desejar tornar-se algo, qualquer que seja o nível, é certo que haverá sofrimento e confusão. Ser como nada não é negação. A ação positiva ou negativa da vontade, que é o desejo aguçado e intensificado, sempre leva à luta e ao conflito; não é o meio para o entendimento. O estabelecimento da autoridade e da obediência a ela é a negação do entendimento. Quando há entendimento, há liberdade, que não pode ser comprada ou concedida por outra pessoa. O que pode ser comprado pode ser perdido, e o que é dado por ser retirado; assim, a autoridade e seu medo são criados. O medo não será afastado por conciliações e velas; ele termina com o Cesar do desejo de se tornar.



(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1/ Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Palavras

Jiddu Krishnamurti (*)

ELE HAVIA LIDO MUITÍSSIMO; e embora fosse pobre, considerava-se rico em conhecimento, o que lhe dava alguma felicidade. Passava muitas horas com seus livros e grande parte do tempo sozinho. Sua mulher havia morrido e seus dois filhos estavam com alguns parentes; e ele estava bem contente de estar afastado da confusão de todos os relacionamentos, acrescentou. Era estranhamente auto-suficiente, independente e tranquilamente decidido. Percorrerá um longo caminho, disse, para entrar na questão da meditação e especialmente para considerar o uso de certos cânticos e frases, cuja repetição constante era extremamente útil para a pacificação da mente. Além disso, existia certa mágica nas próprias palavras: as palavras devem ser pronunciadas corretamente e cantadas da forma correta. Essas palavras foram transmitidas às gerações seguintes desde os tempos antigos; e a própria beleza das palavras, com sua cadência rítmica, produzia uma atmosfera útil à concentração. E sem demora começou a cantar. Ele tinha uma voz agradável e havia uma melodia nascida do amor das palavras e do seu significado; ele cantou com a facilidade que vem da longa prática e da devoção. No momento em que começou a cantar, desligou-se de tudo.
Do outro lado do campo veio o som de uma flauta; era tocada de modo hesitante, mas a sonoridade era clara e pura. O músico estava sentado à farta sombra de uma frondosa árvore, e além dele, ao longe, estavam as montanhas. As montanhas silenciosas, o cântico e o som da flauta pareciam encontrar-se e sumir, para começar novamente. Os papagaios barulhentos passavam rapidamente; e mais uma vez as notas da flauta e o cântico grave e poderoso. Era de manhã cedo e o sol surgia por cima das árvores. As pessoas iam de seus povoados para a cidade, conversando e rindo. A flauta e o  cântico eram insistentes, e algumas pessoas pararam para ouvir; sentaram-se na estradinha e foram capturadas pela beleza do cântico e pela glória da manhã, que não foi absolutamente perturbada pelo apito de um trem distante; pelo contrário, todos os sons pareciam mesclar-se  e encher a terra. Mesmo o alto crocitar de um corvo não destoou.
Como somos estranhamente capturados pelo som das palavras e como as próprias palavras se tornaram importantes para nós: nação, Deus, sacerdote, democracia, revolução. Vivemos de palavras e nos deliciamos com as sensações que elas produzem; e são essas sensações que se tornaram tão importantes. As palavras são prazerosas porque seus sons despertam novamente sensações esquecidas; e sua satisfação é maior quando as palavras são substituídas pelo real, pelo que é. Tentamos preencher nosso vazio interior com palavras  com sons, com barulhos, com atividades; a música e o cântico são uma fuga feliz de nós mesmos, de nossa insignificância e de nosso tédio. As palavras enchem nossas bibliotecas; e como falamos incessantemente! Dificilmente ousamos estar sem um livro, desocupados, sozinhos. Quando estamos sós, a mente está inquieta, vagando por toda parte, preocupando-se, recordando, lutando; assim, não existe nunca a disposição de estar só, a mente está tranqüila.
Obviamente, a mente pode ser aquietada pela repetição de uma palavra, de um cântico, de uma prece. A mente pode ser narcotizada, anestesiada; pode ser anestesiada de modo agradável ou violento, e durante esse sono podem haver sonhos. Mas a mente que é silenciada por disciplina, por ritual, por repetição, jamais pode ser alerta, sensível e livre. Esse açoite da mente, sutil ou grosseiro, não é meditação. É agradável cantar e ouvir alguém que possa fazê-lo bem; mas a sensação vive apenas de mais sensações, e a sensação leva à ilusão. A maioria de nós gosta de viver de ilusões, há prazer em encontrar ilusões mais profundas e mais amplas; mas é o medo de perder nossas ilusões que nos faz negar ou encobrir o real, o verdadeiro. Não é que sejamos incapazes de entender o real; o que nos faz sentir medo é que rejeitamos o real e nos prendemos à ilusão. Ficar cada vez mais profundamente preso na ilusão não é meditação, nem é enfeitar a cela que nos prende. A percepção, desprovida de escolha, dos mecanismos da mente, que é a criadora da ilusão, e o início da meditação.
É estranha a facilidade com que encontramos substitutos para a coisa real, e como ficamos contentes com eles. O símbolo – a palavra, a imagem – torna-se totalmente importante, e em torno dele construímos a estrutura do auto-engano, usando o conhecimento para fortalecê-lo; e assim a experiência torna-se um obstáculo ao entendimento do real. Nomeamos, não apenas para comunicar, mas para reforçar a experiência; esse reforço da experiência é a consciência de si mesmo e, uma vez pego nesse processo, é extremamente difícil abandoná-lo ou seja, ir além da consciência de si mesmo. É essencial morrer para a experiência de ontem e para as sensações de hoje, do contrário haverá repetição, e a repetição de um ato, de um ritual, de uma palavra, é inútil. Na repetição não pode haver renovação. A morte da experiência é criação.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1/Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007




sábado, 27 de abril de 2013

"O que você esta fazendo com a sua vida?"


(Introdução do livro de Jiddu Krishnamurti que dá título a esta postagem – Ed. Nova Era)

A maneira como nos relacionamos uns com os outros, com nosso cérebro, com bens, dinheiro, trabalho e sexo – esses relacionamentos próximos – cria a sociedade. Nosso relacionamento conosco mesmos e com os outros, multiplicado por seis bilhões, cria o mundo. Os preconceitos, a solidão, a ganância, a fome – física ou emocional –, a raiva e a tristeza de cada um de nós reunidos formam o mundo. Nós somos o mundo.
O mundo não é diferente de nós. O mundo é cada um de nós. Então, é simples: se mudarmos cada um de nós, mudaremos o mundo. Se apenas um de nós mudar, isso já causa um movimento. A bondade é contagiosa.
Na escola, aprendemos a ouvir nossos pais e mestres. Isso faz sentido, tecnologicamente. Mas milhares de gerações ainda não aprenderam psicologicamente a parar de sofrer e de causar sofrimento aos outros. A evolução psicológica não acompanhou a evolução biologia nem a científica. Na escola, podemos aprender a formar um meio de vida, mas temos de aprender sozinhos a arte de viver.
A vida fere a todos, com solidão, confusão, sentimentos de fracasso, desespero. Fere com pobreza, doença emocional, violência na rua e em casa. Aprendemos muito, mas muito raramente alguém nos ensina a lidar com os sofrimentos da vida. Ninguém nos ensina que o que fere não é a vida, mas nossas reações ao que nos acontece. É nosso medo, enraizado em autoproteção, que causa a dor. Proteger o corpo é natural. Mas será natural proteger aquilo que chamamos de “ego”? O que é esse ego que é a raiz das inquietações, da dor psicológica que sentimos quando tentamos protegê-lo?
Se alguém foge da dor e da confusão mentais recorrendo a drogas, entretenimento, sexo, negócios, o problema doloroso continua lá, composto de exaustão e vício. Devemos prestar atenção às maneiras do ego, compreendendo que medo, desejo e raiva são naturais, mas que não precisamos agir por meios deles, nem ter tudo o que desejamos. Essa compreensão dissolve a angústia mental.
Precisamos compreender o ego, para entendermos que ele é a fonte de nossos problemas. Isto não significa ser autocentrados, mas sim prestar atenção aos pensamentos, sentimentos e atividades do ego, seu condicionamento cultural, pessoal e biológico. Isso é meditação.
O homem que deixou essas palestras e escritos viveu como um dos grandes excluídos da sociedade: os rebeldes, os poetas errantes, os filósofos religiosos, os sábios iconoclastas, os cientistas e os psicólogos pioneiros, os grandes mestres viajantes de todos os milênios. Por 65 anos, Krishnamurti falou de liberdade psicológica para quem quisesse ouvi-lo. Fundou escolas onde crianças, adolescentes e jovens adultos estudam todas as matérias normais e aprendem a conhecer a si mesmos. Nessas escolas, assim como nas palestras e no que escreveu, ele mostra que não serão as guerras – interiores e exteriores – que nos libertarão, mas sim a verdade a respeito de nós mesmos.
Não há caminho, autoridade ou guru a seguir. Você tem capacidade para descobrir o que você é, e o que esta fazendo com sua vida, seus relacionamentos e seu trabalho. Você precisa vivenciar o que este livro diz. A verdade de outra pessoa é apenas uma opinião, até que nos mesmos a experimentamos. Olhe você mesmo pelo microscópio ou ficará com uma poeira de palavras, não a real percepção da vida.
Em geral, somos ensinados sobre o que pensar, mão não como pensar. Apreendemos a escapar da solidão e do sofrimento mental, mas não a eliminá-los.
Tudo o que está neste livro foi extraído dos escritos de Krishnamurti, de seus diálogos gravados e de palestras públicas. Leia-o e veja por si próprio que acontece.
Uma última observação: “K”, como esse mestre chamava a si mesmo, freqüentemente pedia desculpas às mulheres por usar as palavras “ele”, “dele” e “homem” em seus escritos e palestras. Ele incluía todos os seres humanos em seus ensinamentos.
Dale Carlson
Editor

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O indivíduo e a sociedade


Jiddu Krishnamurti (*)

 

CAMINHÁVAMOS POR UMA RUA movimentada. As calçadas estavam apinhadas de pessoas e o cheiro dos canos de descarga dos carros e ônibus enchiam nossas narinas. As lojas exibiam muitos artigos caros e também de qualidade inferior. O céu trazia uma clara cor prateada e foi agradável entrar no parque ao deixarmos a rua de trânsito pesado. Adentramos mais no parque e nos sentamos.

Ele dizia que o Estado, com sua militarização e legislação, estava absorvendo o indivíduo quase em toda parte, e que a veneração ao Estado agora tomava o lugar da veneração a Deus. Na maioria dos países, o Estado estava penetrando na própria intimidade da vida de seu povo; o Estado dizia o que deviam ler e o que deviam pesar. O Estado espionava seus cidadãos, mantendo uma vigilância divina sobre eles, assumindo a função da Igreja. Era a nova religião. O homem costumava ser um escravo da Igreja, mas agora e um escravo do Estado. Antes era a Igreja, agora era o Estado a controlar sua educação; e nenhum dos dois estava interessado na libertação do homem.

Qual é o relacionamento do indivíduo com a sociedade? Obviamente, a sociedade existe para os indivíduos, não o contrário. A sociedade existe para a fruição do homem; existe para dar liberdade ao indivíduo, para que ele possa ter a oportunidade de despertar a inteligência superior. Essa inteligência não é o simples cultivar de uma técnica ou do conhecimento; é estar em contato com aquela realidade criativa que não pertence à mente superficial. A inteligência não é um resultado cumulativo, mas uma libertação da realização e do sucesso progressivos. A inteligência jamais é estática; ela não pode ser copiada e padronizada, e portanto não pode ser ensinada. A inteligência é descoberta na liberdade.

A vontade coletiva e sua ação, que é a sociedade, não oferece essa liberdade para o indivíduo; pois a sociedade, não sendo orgânica, é sempre estática. A sociedade é composta e estruturada para a conveniência do homem; ela não tem um mecanismo independente próprio. Os homens podem capturar a sociedade, guiá-la, moldá-la, tiranizá-la dependendo de seus estados psicológicos, mas a sociedade não é o senhor do homem. Ela pode influenciá-lo, mas o homem sempre a desmonta. Existe conflito entre o homem e a sociedade porque o homem está em conflito consigo mesmo; e o conflito é entre aquilo que é estático e aquilo que é dinâmico. A sociedade é a expressão exterior do homem. O conflito entre ele e a sociedade é o conflito que existe nele mesmo. Esse conflito, externo e interno, sempre existirá, até que a inteligência superior seja despertada.

Nós somos tanto entidades sociais quanto indivíduos; somos cidadãos assim como homens, tornando-nos isolados em dor e prazer. Para haver paz, temos de entender o relacionamento correto entre o homem e o cidadão. Claro, o Estado preferiria que fôssemos unicamente cidadãos; mas essa é a estupidez dos governos. Nós mesmos gostaríamos de entregar o homem ao cidadão; pois é mais fácil ser um cidadão do que um homem. Ser um bom cidadão é funcionar eficientemente dentro do padrão de uma dada sociedade. A eficiência e a conformidade são exigidas do cidadão, pois elas endurecem-no, tornam-no cruel; e depois ele é capaz de sacrificar o homem pelo cidadão. Um bom cidadão não é necessariamente um bom homem; mas um bom homem está fadado a ser um cidadão correto, não de alguma sociedade ou país em particular. Como ele é principalmente um bom homem, seus atos não serão anti-sociais, ele não estará contra um outro homem.  Ele viverá em cooperação com outros homens bons; ele não buscará autoridade, pois ele não tem autoridade; ele será capaz da eficiência, sem a sua crueldade. O cidadão tenta sacrificar o homem; mas o homem que está buscando a inteligência superior naturalmente evitará a estupidez do cidadão. Assim, o Estado será contra o homem bom, o homem de inteligência; mas esse homem estará livre de todos os governos e nações.

O homem inteligente produzirá uma boa sociedade; mas o bom cidadão não dará origem a sua sociedade em que o homem possa ter uma inteligência mais elevada. O conflito entre o cidadão e o homem será inevitável se o cidadão predominar; e qualquer sociedade que deliberadamente negligencie o homem estará condenada.  Só existe a conciliação entre o cidadão e o homem quando o processo psicológico do homem for entendido. O Estado e a sociedade atual não estão interessados no homem interior, mas somente no homem exterior, o cidadão. Ele pode rejeitar o homem interior, mas ele sempre supera o exterior, destruindo os planos astutamente tramados pelo cidadão. O Estado sacrifica o presente pelo futuro, sempre resguardando-se para este; ele considera o futuro completamente importante, não o presente. Mas para o homem inteligente o presente é da mais alta importância; o agora e não o amanhã. O que é só pode ser entendido com o desaparecimento do amanhã. O entendimento do que é efetua a transformação no presente imediato. É essa transformação que é de importância suprema e não como conciliar o cidadão com o homem. Quando essa transformação acontece, o conflito entre o homem e o cidadão cessa.


(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – volume 1 /Jiddu Krishnamurti.  Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Contentamento


Jiddu Krishnamurti (*)

O AVIÃO ESTAVA LOTADO. Voava a mais de seis mil metros sobre o Atlântico e havia um grosso tapete de nuvens abaixo dele. O céu acima era intensamente azul, o sol estava por trás de nós e voávamos em direção ao oeste. As crianças tinham brincado, correndo de um lado para o outro no corredor, e agora, cansadas, dormiam. Após a longa noite, todos os outros estavam acordados, fumando e bebendo. Um homem em frente contava a outro sobre seus negócios, e uma mulher no assento detrás descrevia em voz agradável as coisas que comprara e especulava sobre o valor do imposto que teria de pagar. Naquela altitude, o voo era tranquilo, não havia solavancos, apesar dos ventos fortes abaixo de nós. As asas do avião brilhavam na clara luz do sol e as hélices giravam suavemente, cortando o ar em uma velocidade fantástica; o vento estava por trás de nós e estávamos fazendo mais de 450km/h.

Dois homens do outro lado do estreito corredor conversavam bem alto, e era difícil não ouvir o que eles diziam. Eram homens grandes, e um tinha o rosto vermelho, castigado pelo clima. Ele explicava o comércio de matar baleias, como era arriscado, o lucro que havia nisso e como os mares eram assustadoramente bravios. Algumas baleias pesavam centenas de toneladas. As mães com filhotes não deviam ser mortas, nem eles tinham permissão de matar mais do que um certo número de baleias em um período específico. O abate desses grandes monstros parecia ser elaborado com muito conhecimento científico, cada grupo tendo um trabalho especial para fazer pelo qual era tecnicamente treinado. O cheiro do navio-fábrica era quase intolerável, mas as pessoas se acostumavam com isso, como se acostumavam com quase tudo. Mas havia uma grande quantidade de dinheiro nisso se tudo corresse bem. Ele começou a explicar a estranha fascinação de matar, mas naquele momento foram servidas as bebidas e o assunto mudou de rumo.

Os homens gostam de matar, quer seja um ao outro ou um cervo inofensivo, com olhos arregalados, no meio da floresta, ou um tigre que atacou o gado. Uma cobra é deliberadamente atropelada na estrada; uma armadilha é montada para um lobo ou um coiote ser apanhado. Pessoas bem vestidas, rindo, saem com suas preciosas armas e matam pássaros que pouco antes piavam uns para os outros. Um menino mata um gaio chilreante com sua espingarda de ar comprimido, e os velhos à sua volta nunca dizem uma palavra de lamento nem ralham com ele; pelo contrário, dizem que bom atirador ele é.  Matar pelo chamado esporte, por alimento, pelo seu país, pela paz – não há diferença em tudo isso. Justificativa não é a resposta. Só existe; não mate. No Ocidente, achamos que os animais existem para o bem de nossos estômagos, para o prazer de matar ou por suas peles. No Oriente, é ensinado há séculos e repetido por cada pai: não mate, seja piedoso, seja compassivo. Aqui, os animais não têm alma, então eles poder ser mortos com impunidade; lá, os animais têm alma, portanto reflita e deixe seu coração conhecer o amor. Comer animais, pássaros, é considerado aqui uma coisa natural, normal, sancionada pela Igreja e pelos anúncios; lá não é, e os sensatos, os religiosos, por tradição e cultura, nunca fazem. Mas isso também está rapidamente desmoronando. Aqui sempre matamos em nome de Deus e do país, e agora está em toda parte. O ato de matar está disseminado; quase da noite para o dia, as culturas antigas estão sendo varridas para o lado e a eficiência, crueldade e os meios de destruição estão sendo cuidadosamente alimentados e fortalecidos.

A paz não está com o político ou com o padre, nem está com o advogado ou com o policial. A paz é um estado de espírito quando existe amor.

Ele era um homem de uma pequena empresa, lutava mas conseguia viver com o que ganhava.

“Eu não vim falar sobre meu trabalho”, disse. “Ele me proporciona o que preciso, e como minhas necessidades são poucas, estou bem. Não sendo superambicioso, não estou no jogo da competição ferrenha. Um dia, quando estava passando, vi uma multidão embaixo das árvores e parei para ouvi-lo. Isso foi há uns dois anos, e o que você disse fez surgir uma inquietação em mim. Não sou culto, mas agora leio suas palestras e aqui estou. Eu costumava estar contente com minha vida, com meus pensamentos e com as poucas crenças que estavam pousadas levemente em minha mente. Mas, desde aquela manhã de domingo, quando vagava por este vale no meu carro e vim por acaso ouvir você, tenho estado descontente. Não é tanto com meu trabalho que estou descontente, mas o descontentamento tomou conta de todo o meu ser. Eu costumava sentir pena das pessoas que eram descontentes. Elas eram tão infelizes, nada as satisfazia – e agora entrei para essa categoria. Eu já estive satisfeito com minha vida, com meus amigos e com as coisas que estava fazendo, mas agora estou desconte e infeliz.”

Se posso perguntar, o que quer dizer com a palavra “descontente”?

“Antes daquela manhã de domingo, quando eu o ouvi, era um indivíduo contente, e suponho que um tanto aborrecido para outros; agora vejo como era estúpido e estou tentando ser inteligente e alerta a tudo à minha volta. Quero chegar a algo, chegar em algum lugar, e esse anseio naturalmente causa descontentamento. Eu costumava estar adormecido, se posso dizer assim, mas agora estou acordando.”

Você está acordando ou está tentando por a si mesmo para dormir novamente pelo desejo de se tornar algo? Você diz que estava dormindo, e que agora você está acordado; mas esse estado desperto o torna descontente, o que o desagrada, causa-lhe dor, e para fugir dessa dor você está tentando tornar-se algo, seguir um ideal e assim por diante. Essa imitação está pondo você para dormir novamente, não está?

“Mas não quero voltar a meu velho estado, quero realmente ficar acordado.”

Não é muito estranho como a mente se engana? A mente não gosta de ser perturbada, ela não gosta de ser sacudida de seus antigos padrões, seus hábitos confortáveis de pensamento e ação; sendo perturbada, ela procura meios e maneiras de estabelecer novos limites e pastos nos quais possa viver com segurança. É essa zona de segurança que a maioria de nós está buscando, e é o desejo de estar seguro, de estar protegido, que nos põe para dormir. As circunstâncias, uma palavra, um gesto, uma experiência, podem nos acordar, nos perturbar, mas queremos ser postos novamente para dormir. Isso está acontecendo com a maioria de nós o tempo todo, e não é um estado desperto. O que temos de entender são os meios pelo quais a mente se põe para dormir. É isso, não é?

“Mas deve haver um grande número de meios pelos quais a mente se põe para dormir. É possível conhecer e evitar todos eles?”

Vários podem ser indicados; mas isso não resolveria o problema, não é?

“Por que não?”

Simplesmente aprender os meios pelos quais a mente se põe para dormir é novamente encontrar um meio, talvez diferente, de não ser perturbado, de estar protegido. A coisa importante é manter-se acordado e não perguntar como se manter acordado; a busca do “como” é o anseio de estar seguro.

“Então, o que se pode fazer?”

Ficar com o descontentamento sem desejar pacificá-lo. É o desejo de não ser perturbado que precisa ser entendido. Esse desejo, que assume muitas formas, é o anseio de fugir do que é. Só quando esse anseio desaparece – mas não por meio de qualquer forma de compulsão consciente ou inconsciente é que a dor do descontentamento cessa. Comparar o que é com o que deveria ser traz dor. A cessação da comparação não é um estado de contentamento; e um estado de vigília, sem as atividades do ser.

“Tudo isso é muito novo para mim. Parece-me que você dá às palavras um significado diferente, mas a comunição só é possível quando nós damos o mesmo significado à mesma palavra ao mesmo tempo.”

Comunicação é relacionamento, não é?

“Você pula para significados mais amplos que sou capaz de entender. Eu preciso entrar mais profundamente nisso tudo e depois talvez entenda.”

 
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 2 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2009