Jiddu Krishnamurti (*)
CAMINHÁVAMOS
POR UMA RUA movimentada. As calçadas estavam apinhadas de pessoas e o cheiro
dos canos de descarga dos carros e ônibus enchiam nossas narinas. As lojas
exibiam muitos artigos caros e também de qualidade inferior. O céu trazia uma
clara cor prateada e foi agradável entrar no parque ao deixarmos a rua de
trânsito pesado. Adentramos mais no parque e nos sentamos.
Ele
dizia que o Estado, com sua militarização e legislação, estava absorvendo o
indivíduo quase em toda parte, e que a veneração ao Estado agora tomava o lugar
da veneração a Deus. Na maioria dos países, o Estado estava penetrando na
própria intimidade da vida de seu povo; o Estado dizia o que deviam ler e o que
deviam pesar. O Estado espionava seus cidadãos, mantendo uma vigilância divina
sobre eles, assumindo a função da Igreja. Era a nova religião. O homem costumava
ser um escravo da Igreja, mas agora e um escravo do Estado. Antes era a Igreja,
agora era o Estado a controlar sua educação; e nenhum dos dois estava
interessado na libertação do homem.
Qual é
o relacionamento do indivíduo com a sociedade? Obviamente, a sociedade existe
para os indivíduos, não o contrário. A sociedade existe para a fruição do
homem; existe para dar liberdade ao indivíduo, para que ele possa ter a
oportunidade de despertar a inteligência superior. Essa inteligência não é o
simples cultivar de uma técnica ou do conhecimento; é estar em contato com
aquela realidade criativa que não pertence à mente superficial. A inteligência
não é um resultado cumulativo, mas uma libertação da realização e do sucesso
progressivos. A inteligência jamais é estática; ela não pode ser copiada e
padronizada, e portanto não pode ser ensinada. A inteligência é descoberta na
liberdade.
A
vontade coletiva e sua ação, que é a sociedade, não oferece essa liberdade para
o indivíduo; pois a sociedade, não sendo orgânica, é sempre estática. A sociedade
é composta e estruturada para a conveniência do homem; ela não tem um mecanismo
independente próprio. Os homens podem capturar a sociedade, guiá-la, moldá-la,
tiranizá-la dependendo de seus estados psicológicos, mas a sociedade não é o
senhor do homem. Ela pode influenciá-lo, mas o homem sempre a desmonta. Existe
conflito entre o homem e a sociedade porque o homem está em conflito consigo
mesmo; e o conflito é entre aquilo que é estático e aquilo que é dinâmico. A
sociedade é a expressão exterior do homem. O conflito entre ele e a sociedade é
o conflito que existe nele mesmo. Esse conflito, externo e interno, sempre
existirá, até que a inteligência superior seja despertada.
Nós
somos tanto entidades sociais quanto indivíduos; somos cidadãos assim como
homens, tornando-nos isolados em dor e prazer. Para haver paz, temos de
entender o relacionamento correto entre o homem e o cidadão. Claro, o Estado
preferiria que fôssemos unicamente cidadãos; mas essa é a estupidez dos
governos. Nós mesmos gostaríamos de entregar o homem ao cidadão; pois é mais
fácil ser um cidadão do que um homem. Ser um bom cidadão é funcionar
eficientemente dentro do padrão de uma dada sociedade. A eficiência e a
conformidade são exigidas do cidadão, pois elas endurecem-no, tornam-no cruel; e
depois ele é capaz de sacrificar o homem pelo cidadão. Um bom cidadão não é
necessariamente um bom homem; mas um bom homem está fadado a ser um cidadão
correto, não de alguma sociedade ou país em particular. Como ele é
principalmente um bom homem, seus atos não serão anti-sociais, ele não estará
contra um outro homem. Ele viverá em
cooperação com outros homens bons; ele não buscará autoridade, pois ele não tem
autoridade; ele será capaz da eficiência, sem a sua crueldade. O cidadão tenta
sacrificar o homem; mas o homem que está buscando a inteligência superior
naturalmente evitará a estupidez do cidadão. Assim, o Estado será contra o
homem bom, o homem de inteligência; mas esse homem estará livre de todos os
governos e nações.
O homem
inteligente produzirá uma boa sociedade; mas o bom cidadão não dará origem a
sua sociedade em que o homem possa ter uma inteligência mais elevada. O
conflito entre o cidadão e o homem será inevitável se o cidadão predominar; e
qualquer sociedade que deliberadamente negligencie o homem estará
condenada. Só existe a conciliação entre
o cidadão e o homem quando o processo psicológico do homem for entendido. O
Estado e a sociedade atual não estão interessados no homem interior, mas
somente no homem exterior, o cidadão. Ele pode rejeitar o homem interior, mas
ele sempre supera o exterior, destruindo os planos astutamente tramados pelo
cidadão. O Estado sacrifica o presente pelo futuro, sempre resguardando-se para
este; ele considera o futuro completamente importante, não o presente. Mas para
o homem inteligente o presente é da mais alta importância; o agora e não o amanhã.
O que é só pode ser entendido com o
desaparecimento do amanhã. O entendimento do que é efetua a transformação no presente imediato. É essa transformação
que é de importância suprema e não como conciliar o cidadão com o homem. Quando
essa transformação acontece, o conflito entre o homem e o cidadão cessa.
(*) Um dos
textos do livro: Comentários sobre o
viver. Breves textos – volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007