terça-feira, 10 de julho de 2012

“Por que você dissolveu a Ordem da Estrela?”



Jiddu Krishnamurti (*)

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Ele era um homem jovem, acabara de sair da faculdade e era entusiasmado. Movido pelo desejo de fazer o bem, recentemente aderira a um movimento no sentido de ser mais eficaz, e gostaria de dedicar  toda a vida a ele; mas, infelizmente, seu pai era inválido, e ele tinha de sustentar os progenitores. Ele percebia os inconvenientes do movimento, como seus méritos, mas o bem compensava o mal. Não era casado, disse, e nunca o seria. Seu sorriso era amigável, e ele estava ansioso por se expressar.

“Outro dia, eu estava presente em sua palestra, na qual você disse que a verdade não pode se organizada, e que nenhuma organização pode levar alguém a ela. O senhor foi muito definitivo a esse respeito, mas sua explicação não foi totalmente satisfatória para mim, e quero debater esse tema. Sei que você foi líder de uma grande organização no passado, a Ordem da Estrela, que o senhor dissolveu, e, se me permite perguntar, isso correu por um capricho pessoal ou foi motivado por algum princípio?”

            Nenhum dos dois. Se existe uma causa para a ação, há ação? Se você renuncia por conta de um princípio, uma ideia, uma conclusão, há renuncia? Se você abandona algo em nome de algo maior, ou por alguma pessoa, isso significa, de fato, abandonar?

“A razão não desempenha um papel relevante na renuncia; é isso que quer dizer?”

A razão pode levar alguém a se comportar desta ou daquela maneira; mas o que é concebido pela razão pode ser desfeito pela razão. Se ela é o critério da ação, a mente nunca pode estar livre para agir. A razão, não importa qual sutil e lógica, é um processo de pensar, e o pensar é sempre influenciado, condicionado por fantasia pessoal, pelo desejo ou uma ideia, uma conclusão, seja imposta ou autoinduzida.

“Se não foi razão, princípio ou desejo pessoal o que o levou a fazer isso, então foi algo fora de si mesmo, um agente superior ou divino?”

Não. Mas talvez fique claro se pudermos abordar o assunto de maneira diferente. Qual é o seu problema?

“Você disse que a verdade não pode ser organizada e que nenhuma organização pode levar o homem à verdade. A organização a que pertenço sustenta que o homem pode ser levado à verdade por meio de determinados princípios de ação, do esforço pessoal correto, de se entregar às boas obras e assim por diante. Meu problema é o seguinte: será que estou no caminho certo?”

Você acha que há um caminho par a verdade?

“Se não achasse isso, não pertenceria a essa organização. Segundo nossos lideres, a organização se baseia na verdade; é dedicada ao bem-estar de todos, e ajudará tanto o aldeão quanto as pessoas altamente educadas e que detêm cargos de responsabilidade. No entanto, quando ouvi sua palestra outro dia, fiquei perturbado, e por isso aproveitei a primeira oportunidade de visitá-lo. Espero que você compreenda minha dificuldade.”

Vamos abordar o assunto devagar, passo a passo. Em primeiro lugar, há um caminho para a verdade? Um caminho implica avançar de um ponto fixo a outro. Como entidade viva, você está mudando, reformulando, forçando, questionando a si próprio, na esperança de encontrar uma verdade permanente, imutável. Não é mesmo?

“Sim. Quero encontrar a verdade, ou Deus, a fim de fazer o bem”, ele respondeu com entusiasmo.

É certo que não há nada permanente em você além do que você considera como tal; mas seu pensamento também é transitório, não é? E a verdade teria um lugar fixo, sem qualquer movimento?

“Eu não sei. Vemos tanta pobreza, tanta infelicidade e confusão no mundo, e com nosso desejo de fazer o bem, aceitamos um líder ou uma filosofia que ofereça alguma esperança. De outra forma, a vida seria terrível.”

Todas as pessoas decentes querem fazer o bem, mas a maioria de nós não reflete sobre o problema. Dizemos que não podemos pensar sozinhos ou que os lideres sabem mais. Mas será certo? Veja os vários lideres políticos, os chamados líderes religiosos e os lideres da reforma econômica e social. Todos têm esquemas, cada um dizendo que o seu é caminho para a salvação, para erradicação da pobreza e assim por diante; e indivíduos como você que querem agir em face de toda essa infelicidade e caos, são apanhados na teia da propaganda e das afirmações dogmáticas. Você não reparou que a própria ação gera muito mais infelicidade e caos?

A verdade não tem domicílio fixo; é algo vivo, mais desperto, mais dinâmico do que tudo que a mente possa pensar, portanto, não pode haver caminho para ela.

“Acho que compreendo isso, senhor. Mas você é contra todas as organizações?”

Obviamente, seria tolo ser “contra” os correios ou outras organizações similares. Mas você não está se referindo a essas organizações, não é?

“Não. Estou falando de Igrejas, grupos espirituais, sociedades religiosas e por aí vai. A organização à qual pertenço abraça todas as religiões, e qualquer um que esteja preocupado com melhora física e espiritual do homem pode ser um membro. Evidentemente, essas organizações sempre têm seus líderes, que dizem conhecer a verdade, ou que levam uma vida santificada.”

A verdade pode ser organizada, com um presidente e um secretário ou com altos sacerdotes e intérpretes?

“Se compreendi a questão corretamente, parece que não. Então por que esses líderes santificados dizem que suas organizações são necessárias?”

Não importa o que dizem os líderes, pois eles são tão cegos quanto seus seguidores; caso contrário, não seriam líderes. O que você acha, independente de seus lideres? Essas organizações são necessárias?

“Talvez não sejam estritamente necessárias, mas realmente encontro conforto ao pertencer a uma dessas organizações, e trabalhar com outras pessoas com a mesma visão.”

Exato. E há também um sentimento de segurança em ser orientado sobre o que fazer, não? O líder sabe, e você, o seguidor, não sabe; assim, sob a direção dele, você sente que pode fazer a coisa certa. Ter uma autoridade sobre a sua pessoa, alguém para guiá-lo, é muito reconfortante, especialmente quando em todos os lados há tanto caos e infelicidade. É por isso que você se torna não exatamente um escravo, mas um seguidor, executando o plano estabelecido pelo líder. É você, o ser humano, que causa toda essa bagunça no mundo, mas você não é importante; só ao plano dão importância. Mas o plano é mecânico, precisa de seres humanos para colocá-lo em operação; portanto, você se torna útil ao plano.

E existem os sacerdotes, com sua autoridade divina para salvar a alma, e desde a infância você é condicionado por eles a pensar de certa maneira. Novamente, você não é importante como ser humano; não é sua liberdade, seu amor, o que interessa, mas sua alma, que deve ser salva de acordo com os dogmas de determinada religião ou seita.

“Eu vejo a verdade disso, realmente vejo, como você explica. Então, o que é importante em meio a toda essa confusão?”

O importante é livrar sua mente de inveja, ódio e violência; e para isso você não precisa de uma organização, precisa? As chamadas organizações religiosas jamais libertam a mente; só fazem com que ela se conforme a determinada religião ou crença.

“Eu preciso mudar; deve haver amor em mim, tenho de deixar de ser invejoso, e então agirei sempre corretamente. Não precisarei que alguém me diga qual é a ação correta. Vejo, agora, que essa é a única coisa que importa, e não a que organização pertenço.”

Podemos seguir o que, em geral, é considerado uma ação correta, ou receber instruções sobre o que é a ação correta; mas isso não gera amor, gera?

“Não, evidentemente que não; assim estamos apenas seguindo um padrão criado pela mente. Mas uma vez, vejo com muita clareza, senhor, e agora entendo por que você dissolveu a organização da qual era líder. Um indivíduo deve ser uma luz em si mesmo. Seguir a luz do outro nos leva à escuridão.”


(*) Parte de um dos textos de Jiddu Krishnamurti no livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 3. Rio de Janeiro: Nova Era, 2012

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