quinta-feira, 5 de julho de 2012

Cerimônias e Conversão



Jiddu Krishinamurti *

           “Em um grande cercado, entre muitas árvores, havia uma igreja. As pessoas, negras e brancas estavam entrando. Dentro havia mais luz do que nas igrejas européias, mas as disposições eram as mesmas. A cerimônia estava em andamento e havia beleza. Quando terminou, pouquíssimos negros falaram com os brancos ou os brancos com os negros, e todos nós tomamos nossos diferentes caminhos.

Em um outro continente havia um templo, e eles cantavam um hino em sânscrito; era realizada a Puja, uma cerimônia hindu. A congregação era de outro padrão cultual. A tonalidade das palavras sânscritas é muito e poderosa; tem estranhos peso e profundidade.

Você pode ser convertido de uma crença para outra, de um dogma para outro, mas não pode ser convertido ao entendimento da realidade. Crença não é realidade. Você pode mudar sua mente, sua opinião, mas a verdade ou Deus não é uma convicção: é uma experiência que não está baseada em crenças ou dogmas nem em qualquer experiência anterior. Se você tiver uma experiência nascida da crença, sua experiência será a reação condicionada àquela crença. Se você tiver uma experiências inesperada, espontaneamente, e criar mais experiência sobre a primeira, a experiência será simplesmente a continuação da memória reagindo ao contato com o presente. A memória é sempre morta, revivendo apenas em contato com o presente vivo.

Conversão é a mudança de uma crença ou de um dogma para outro, de uma cerimônia para outra mais gratificante, mas não abre a porta para a realidade. Pelo contrário, a gratificação é um estorvo à realidade. E, ainda assim, é o que as religiões organizadas e os grupos religiosos estão tentando fazer: convertê-lo a um dogma, uma superstição ou uma esperança mais ou menos razoável. Eles lhe oferecem uma cela melhor. Pode ser confortável ou não dependendo de seu temperamento, mas, de qualquer forma, é uma prisão.

Religiosa e politicamente, em níveis diferentes de cultura, essa conversão está acontecendo o tempo todo. As organizações com seus líderes fortalecem-se ao manter os homens nos padrões ideológicos que oferecem, sejam religiosos ou econômicos. Nesse processo se encontra a exploração mútua. A verdade está fora de todos os padrões, medos e esperanças. Se você descobrisse a suprema felicidade da verdade, teria de romper com todas as cerimônias e padrões ideológicos.

A mente encontra segurança e força em padrões religiosos e políticos, e é isso que dá energia às organizações. Existem sempre os conservadores e os novos recrutas. Estes mantêm as organizações funcionando, com seus investimentos e propriedades, e o poder e o prestígio das organizações atraem aqueles que cultuam o sucesso a sabedoria mundanos. Quando a mente descobre que os velhos padrões não são mais satisfatórios e estimulantes, ela se converte as outras crenças e dogmas mais confortadores e fortalecedores. Portanto a mente é o produto do ambiente, recriando e sustentando a si mesma em sensações e identificações; e é por isso que a mente se aferra a códigos de conduta, padrões de pensamento etc. Visto que a mente é o resultado do passado, ela jamais consegue descobrir a verdade ou permitir que a verdade tome forma. Ao prender-se a organizações, ela descarta a busca pela verdade.

Obviamente, os rituais oferecem aos participantes uma atmosfera na qual se sentem bem. Tantos os rituais coletivos quanto os individuais dão certa tranquilidade à mente; eles oferecem um contraste vital com a enfadonha vida cotidiana. Há alguma beleza e metodicidade nas cerimônias, mas elas são, fundamentalmente, estimulantes; e, assim como todos os estimulantes, logo entorpecem a mente e o coração. Os rituais tornam-se vícios; tornam-se uma necessidade, e o indivíduo não consegue passar sem eles. Essa necessidade é considerada uma renovação espiritual, uma concentração de força para enfrentar a vida, uma meditação semanal ou diária e assim por diante; mas, se examinar mais de perto esse processo, verá que os rituais são vãs repetições que oferecem uma fuga maravilhosa e respeitável do autoconhecimento. Sem autoconhecimento, a ação tem muito pouca importância.

A repetição de cânticos, de palavras e frases faz a mente adormecer, embora seja estimulante o bastante durante aquele momento. Nesse estado sonolento, experiências realmente ocorrem, mas são projetadas. Embora gratificantes, essas experiências são ilusórias. A experiência da realidade não acontece por meio de repetições, por meio de práticas. A verdade não é um fim, um resultado, um objetivo, ela não pode ser convidada, pois não é uma coisa da mente.”

* Do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007  

2 comentários:

  1. Curiosamente, esse texto foi muito oportuno. Tenho realizado muitas reflexões, comparações e chegado a algumas conclusões perturbadoras a respeito do alvo de meus estudos. A constatação de uma a impostura ampla e abrangente tem me submetido a um turbilhão de pensamentos, onde o juízo do bom senso e a percepção da realidade, tem me escudado contra os conflitos internos que normalmente me afligem quando a verdade crua passa a ser percebida.
    Tenho me lembrado constantemente de você meu caro Roberto, tentado manter minha discrição frente a realidade dos fatos. Uma postura elegante sem dúvida, mas me questiono, é justa tal complacência. Como colocar-se frente ao embuste, aceitá-lo e tentar levar as coisas como se nada estivesse acontecendo, somente para usufruir de um ambiente aprazível, ou respaldar-me na consciência e romper as amarras da mente de forma definitiva.

    Grande abraço,

    Luiz Otávio

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  2. Caro Luiz Otávio, é sempre com alegria que recebo suas manifestações. Elas me parecem sair do fundo do seu coração. Os conflitos internos fazem parte do nosso viver. Pelo menos, no meu viver eu tenho certeza que eles estão presentes. Ainda não superei a prevalente ação dos pensamentos em minha vida. E como diz Krishnamurti, onde há pensamento há conflito. Penso que qualquer escolha que façamos frente a um conflito, geralmente, nos leva a mais conflitos. Penso, ainda, que só quando somos capazes de observar uma situação, um fato, de forma simples, direta e indubitável o implícito é nossa própria ação. Ou seja, somente quando a situação, ou fato, torna-se clara(o), não haverá escolha, há somente ação.
    Um grande abraço e obrigado pelo comentário,
    Roberto Lira

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