terça-feira, 18 de setembro de 2012

A busca da verdade


Jiddu Krishnamurti (*)


ELE VIERA DE MUITO LONGE, viajando por vários milhares de quilômetros de barco e avião. Falava apenas seu próprio idioma e com maior dificuldade estava se ajustando a esse novo e perturbador ambiente. Não estava absolutamente acostumado a esse tipo de alimento e a esse clima; tendo nascido e sido criado em uma altitude muito elevada, o calor úmido tinha um efeito ruim sobre ele. Era um homem culto, uma espécie de cientista, e escrevera alguns trabalhos. Parecia bem familiarizado com ambas as filosofias, ocidental e oriental, e fora católico apostólico romano. Disse que estava insatisfeito com tudo há muito tempo, mas levara adiante por causa da família. Seu casamento era o que poderia ser considerado feliz, e ele amava seus dois filhos. Eles estavam agora na faculdade naquele país longínquo, e tinham um futuro brilhante. Mas a insatisfação em relação à sua vida e atividade foi aumentando constantemente ao longo dos anos, e ele enfrentou uma crise há alguns meses. Deixou a família e tomou todas as providências necessárias em relação à mulher e aos filhos, e agora aqui estava ele. Tinha dinheiro suficiente apenas para o básico, e viera encontrar Deus. Ele disse que não estava, de maneira alguma, desequilibrado e que tinha clareza sobre seu propósito.

Equilíbrio não é um assunto para ser julgado pelos frustrados ou pelos bem-sucedidos. Os bem-sucedidos podem ser os desequilibrados; e os frustrados tornam-se amargos e cínicos ou encontram uma fuga através de alguma ilusão projetada. O equilíbrio não está nas mãos dos analistas; ajustar-se às normas não necessariamente indica equilíbrio. As próprias normas podem ser o produto de uma cultura desequilibrada. Uma sociedade aquisitiva, com seus padrões e normas, é desequilibrada, seja de esquerda ou de direita, quer seja aquisitividade investida no Estado ou em seus cidadãos. Equilíbrio seria a não-aquisitividade. A idéia de equilíbrio e não-equilíbrio está ainda no campo do pensamento e, portanto, não pode ser o juiz. O próprio pensamento, a reação condicionada com seus padrões e julgamentos, não é a verdade. A verdade não é uma idéia, uma conclusão.

Pode Deus ser encontrado por meio da procura? Você pode procurar pelo incognoscível? Para encontrar, você deve conhecer o que está procurando. Se você procura para encontrar, o que você encontrar será uma projeção; será o que você deseja, e a criação do desejo não é a verdade. Procurar a verdade é negá-la. A verdade não tem residência fixa; não há um caminho nem um guia para ela, e a palavra não é a verdade. Será a verdade encontrada em um cenário particular, em um clima especial, entre certas pessoas? Está aqui e não ali? Este é o guia para a verdade e não um outro? Existe realmente um guia? Quando a verdade é procurada, o que é encontrado só pode surgir da ignorância, pois a própria busca nasce da ignorância. Você não pode procurar a realidade; você deve cessar para que a realidade seja.

“Mas não posso encontrar o sem-nome? Eu vim para este país porque aqui há um sentimento maior por essa busca. Materialmente, pode-se ser mais livre aqui, não é necessário possuir tantas coisas; as posses não lhe sobrecarregam aqui como em outros lugares. É por isso, em parte, que as pessoas vão para mosteiros. Mas existem fugas psicológicas em ir para um mosteiro e, como eu não quero fugir para um isolamento organizado, estou aqui, vivendo minha vida para encontrar o sem-nome. Será que tenho capacidade para encontrá-lo?”

É uma questão de capacidade?  A capacidade não implica seguir um rumo particular de ação, um caminho predefinido, com os ajustes necessários? Quando você faz essa pergunta, não está perguntando se você, um indivíduo comum, tem os meios necessários de obter o que deseja? Certamente sua pergunta sugere que somente os excepcionais encontram a verdade, e não o homem comum. Será a verdade concedida apenas a uns poucos, aos excepcionalmente inteligentes? Por que perguntamos se somos capazes de encontrá-la? Nós temos o padrão, o exemplo do homem que, presume-se, tenha descoberto a verdade; e o exemplo, sendo elevado muito acima de nós, cria incerteza em nós mesmos. O exemplo, consequentemente, assume grande importância, e há uma competição entre o exemplo e nós mesmos; nós também ansiamos por ser aquele que bate o recorde. Essa pergunta, “Eu tenho capacidade?”, não surge da comparação consciente ou inconsciente da pessoa entre o que ela é e o que ela supõe que o exemplo seja?

Por que nos comparamos com o ideal? E trará a comparação entendimento? O ideal é diferente de nós? Não é uma projeção, uma coisa criada por nós, e isso não impede, portanto, nosso entendimento de como nós somos? A comparação não é uma fuga do entendimento de nós mesmos? Existem muitos modos de fugirmos de nós mesmos, a comparação é um deles. Certamente, sem o autoentendimento a busca pela chamada realidade é uma fuga de si mesmo. Sem autoconhecimento, o deus que você busca é o deus da ilusão; e a ilusão, inevitavelmente, traz conflito e dor. Sem autoconhecimento, não pode haver raciocínio correto; e então todo o conhecimento é ignorância que só pode levar a confusão e à destruição. O autoconhecimento não é o objetivo final; é a única ferramenta de acesso ao inexaurível.

“O autoconhecimento não é extremamente difícil de ser adquirido e não leva muito tempo?”

A própria noção de que o autoconhecimento é difícil de se adquirir é um obstáculo ao autoconhecimento. Se me permite sugerir, não suponha que será difícil ou que levará muito tempo; não predetermine o que é e o que não é. Comece.  O autoconhecimento é para ser descoberto na ação do relacionamento; e toda a ação é relacionamento. O autoconhecimento não surge pelo auto-isolamento, pelo recolhimento; a negação da relação é a morte. A morte é a resistência suprema. A resistência, que é repressão, substituição ou sublimação em qualquer forma, é um obstáculo ao fluxo do autoconhecimento; mas a resistência é para ser descoberta no relacionamento, na ação. A resistência, seja negativa ou positiva, com suas comparações e justificativas, suas condenações e identificações, é a rejeição do que é. O que é está implícito; e a percepção do implícito, sem qualquer escolha, é a revelação dele. Essa revelação é o início da sabedoria. A sabedoria é essencial para que o desconhecido, o inexaurível, tome forma.

 

 (*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A simplicidade interior


Roberto Lira

Pensamos a simplicidade interior como algo que tem uma relevância muito maior do que a simplicidade de se satisfazer com pouca posse ou poucas coisas no cotidiano a vida. Ficar livre do fardo de várias coisas, especialmente, da posse de bens materiais ou abandono de algum vício degradante ou deteriorante, é relativamente fácil quando a jornada pessoal busca algo além da trivialidade da vida. Dar valor a poucas posses ou ser virtuoso nas condutas sociais não é ter simplicidade interior, isso nada mais é do que exteriorizar ausência de sofisticação.

Não queremos nesta reflexão desmerecer a simplicidade exterior, ela tem sua importância, pois não deixa de ser uma ação de probidade. Mas por que será que, geralmente, começamos com a simplicidade exterior e não com a interior? Será a razão disso nosso desejo, subliminar, de nos engrandecer aos olhos dos outros? Esse desejo, imposto pela mente, não aumenta nossa complexidade e vez de nos tornar simples, integralmente? Pensamos que a simplicidade interior nos leva também a ser simples exteriormente, mas nem sempre a simplicidade exterior nos leva a simplicidade interior. Portanto, a simplicidade interior é prioritária em nossas vidas.

Ser interiormente simples é não apresentar contradição dentro si mesmo. A simplicidade interior começa por ser honesto consigo mesmo, quando somos capazes de reconhecer que mentimos quando mentimos e não esconder tal fato ou fugirmos dele. A simplicidade interior entre outras coisas nos torna capaz de olhar a nós mesmos sem qualquer desfiguração, de vermos o falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro que existe em cada um de nós.

Ser simples interiormente nos torna capaz de observarmos as coisas sem intermediários e sem medo. Disso decorre uma percepção das coisas de forma clara, direta, sem palavras, sem símbolos e sem ideias. A simplicidade interior conduz nossas ações sem ideias e permite enfrentarmos aquilo que é, a cada minuto, com condutas livres e criadoras.

Há simplicidade interior resulta do autoconhecimento, quando compreendemos a nós mesmos: os movimentos de nossos pensamentos, nossas reações com outros, nossos conformismos para nos protegermos, nossa dependência das autoridades religiosas e/ou políticas. Essa simplicidade não pode existir quando nos apegamos a qualquer crença ou dogma, ela surgirá quando formos livres interiormente.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"Meu caminho e seu caminho"


Jiddu Krishnamurti (*)
 

ELE ERA UM ESTUDIOSO, falava muitos idiomas e era viciado em conhecimento como uma outra pessoa o é em bebidas alcoólicas. Estava incessantemente citando terceiros para apoiar suas próprias opiniões. Interessava-se por ciências e artes, e quando dava sua opinião, era com um movimento de cabeça e um sorriso que transmitia de um modo sutil que não era meramente sua opinião, mas a verdade final. Disse que tinha suas próprias experiências, abalizadas e convincentes para ele. “Você também tem suas experiências, mas não pode me convencer”, disse ele.  “Você segue o seu caminho, e eu o meu. Existem caminhos diferentes para a verdade, e todos vamos nos encontrar lá um dia.” Era amistoso, de uma forma distante, mas firme. Para ele os Mestres, embora não gurus reais e visíveis, eram uma realidade, e tornar-se seu discípulo era fundamental. Ele e vários outros designavam como discípulos àqueles que estivessem dispostos a aceitar esse caminho e a autoridade deles; mas ele e seu grupo não pertenciam àqueles que, pelo espiritualismo, descobriam guias entre os mortos. Para encontrar os Mestres você deve servir, trabalhar, sacrificar-se, obedecer e praticar certas virtudes; e, claro, a crença era necessária.

Estar preso à ilusão é fiar-se na experiência como um meio de descobrir o que é. O desejo e o anseio condicionam a experiência; e depender da experiência como um meio para o entendimento da verdade é buscar um modo de auto-engradecimento. A experiência jamais pode trazer libertação da dor; a experiência não é uma resposta adequada ao desafio da vida. O desafio deve ser enfrentado de modo novo, fresco, pois o desafio é sempre novo. Para entender o desafio de forma adequada, a memória condicionada da experiência deve ser posta de lado, as reações de prazer e dor dever ser profundamente entendidas. A experiência é um impedimento à verdade, pois ela pertence ao tempo, é o resultado do passado; e como pode a mente, que é o resultado da experiência, do tempo, entender o que é atemporal? A verdade da experiência não depende de idiossincrasias e fantasias pessoais; a verdade disso e percebida apenas quando há atenção sem censura, justificativa ou qualquer forma de identificação. A experiência não é uma abordagem à verdade; não existe “sua experiência” ou “minha experiência”, mas apenas a compreensão inteligente do problema.

Sem autoconhecimento a experiência produz ilusão; com autoconhecimento a experiência, que é a resposta ao desafio, não deixa um resíduo acumulativo como memória. O autoconhecimento é a descoberta momento a momento dos mecanismos do Eu, de suas intenções e buscas, seus pensamentos e desejos. Jamais pode haver “sua experiência” e “minha experiência”; o próprio termo “minha experiência” indica ignorância e aceitação da ilusão. No entanto, muitos gostam de viver em ilusão, pois há grande satisfação nela; é um refúgio particular que nos estimula e dá um sentimento de superioridade. Se tenho capacidade, talento ou astúcia, torno-me um líder, um intermediário, um representante daquela ilusão; e como a maioria das pessoas adora evitar o que é, há a construção de uma organização com propriedades e rituais, com votos e reuniões secretas. A ilusão é vestida de acordo com a tradição, sendo mantida dentro do campo da respeitabilidade; e como a maioria busca poder de uma forma ou de outra, o princípio hierárquico é estabelecido, o iniciante e o iniciado, o discípulo e o Mestre, e mesmo entre os Mestres existem níveis de progresso espiritual. A maioria adora explorar e ser explorado, e esse sistema oferece os meios, quer sejam ocultos ou claros.

Explorar é ser explorado. O desejo de usar outros para suas necessidades psicológicas produz dependência, e quando você depende, precisa manter, possuir; e o que você possui, possui você. Sem dependência, sutil ou evidente, sem possuir coisas, pessoas e ideias, você é vazio, uma coisa sem importância. Você quer ser algo, e para evitar o medo atormentador de ser nada você pertence a essa ou àquela organização, a essa ou àquela ideologia, a essa igreja ou àquele templo; assim você é explorado e, por sua vez, explora. Essa estrutura hierárquica oferece excelente oportunidade de auto-expansão. Você pode querer fraternidade, mas como pode haver fraternidade se você está buscando distinções espirituais? Você pode rir dos títulos mundanos; mas quando você admite o Mestre, o salvador, o guru no domínio do espírito, não está persistindo na atitude mundana? Podem haver divisões hierárquicos ou níveis de progresso espiritual na compreensão da verdade, na percepção de Deus? O amor não admite divisão. Ou você ama ou não ama; mas não faça da falta de amor um processo arrastado cuja finalidade é o amor. Quando você sabe, você não ama; quando você está atentamente desprovido de escolha quanto a esse fato, há aí uma possibilidade de transformação; mas diligentemente cultivar essa distinção entre o Mestre e o discípulo, entre aqueles que conseguiram e aqueles que não conseguiram, entre o salvador e o pecador, é negar o amor. O explorador, que por sua vez é explorado, encontra uma feliz zona de caça nesse ambiente escuro e ilusório.

A separação entre Deus ou a realidade e você é produzida por você, pela mente que se prende ao conhecido, à certeza, à segurança. Essa separação não pode ser ligada por uma ponte; não existe ritual, nenhuma disciplina, nenhum sacrifico que possa levá-lo a atravessá-lo; não existe nenhum salvador, nenhum Mestre, nenhum guru que possa levá-lo ao real ou destruir essa separação. A divisão não é entre o real e você; é em você, é o conflito de desejos opostos. O desejo cria seu próprio oposto; e a transformação não é uma questão de estar centrado em um desejo, mas de estar livre do conflito que o anseio causa. O anseio, em qualquer nível do ser de um indivíduo, gera mais conflito, e daí tentamos fugir de todas as maneiras possíveis, o que apenas aumenta o conflito, tanto interno quanto externo. Este não pode ser dissolvido por uma outra pessoa, por mais excelente que seja, nem por qualquer mágica ou ritual. Estes podem lhe anestesiar de forma agradável, mas, quando acordar, o problema ainda existirá. Mas a maioria não quer acordar, e assim vivemos em ilusão. Com a dissolução do conflito há tranquilidade, e só então a realidade pode tomar forma. Os Mestres, salvadores e gurus não são importantes, mas o que é essencial é entender o crescente conflito do desejo; e esse entendimento vem apenas por meio do autoconhecimento e da atenção constante aos movimentos do Eu.

A autopercepção é trabalhosa, e visto que a maioria prefere um caminho fácil e ilusório, trazemos à existência a autoridade que dá forma e padrão à nossa vida. Essa autoridade pode ser coletiva, o Estado; ou pode ser pessoal, o Mestre, o salvador, o guru. A autoridade de qualquer tipo é cegante, leva a ações irrefletidas; e como a maioria acha que ser ponderado é um esforço, entregamo-nos à autoridade.

A autoridade produz poder e o poder sempre se torna centralizado e, portanto, totalmente corruptível; ele corrompe não apenas quem o empunha, mas também aquele que o segue. A autoridade do conhecimento e da experiência perverte, quer seja conferida ao Mestre, a seu represente ou ao padre. É sua própria vida, esse conflito aparentemente interminável, que é significante, não o padrão ou o líder. A autoridade do Mestre e do padre o afasta da questão central, que é o conflito dentro de si mesmo. O sofrimento nunca pode ser entendido e dissolvido por meio da busca por um modo de vida. Tal busca é mero evitar o sofrimento, a imposição de um padrão, que é fuga; e o que é evitado apenas inflama, trazendo mais calamidade e dor. O entendimento de si mesmo, por mais doloroso ou passageiramente prazeroso, é o início da sabedoria.

Não existe caminho para a sabedoria. Se houver um caminho, a sabedoria será o formulado, já conhecida, já imaginada. Pode a sabedoria ser conhecida ou cultivada? É uma coia a ser aprendida, acumulada? Se for, então se torna mero conhecimento, uma coisa da experiência e dos livros. A experiência e o conhecimento são uma cadeia continua de reações e, portanto, nunca podem compreender o novo, o fresco, o não-criado. A experiência e o conhecimento, sendo contínuos, formam um caminho para suas próprias projeções, e desse modo estão constantemente tolhendo. A sabedoria é o entendimento do que é de momento a momento, sem o acúmulo de experiências e conhecimento. O que é acumulado não dá liberdade para entender, e sem liberdade não há descobrimento; e é essa descoberta incessante que cria a sabedoria. Ela é sempre nova, sempre fresca, e não há meios de acumulá-la. Os meios destroem o frescor, a novidade, a descoberta espontânea.

Os muitos caminhos para uma realidade são a invenção de uma mente intolerante; são o resultado de uma mente que cultiva a tolerância. “Eu sigo meu caminho e você segue o seu, mas sejamos amigos e nos encontraremos finalmente.” Você e eu nos encontraremos se você estiver indo para o norte e eu para o sul? Podemos ser amigos se você tem um conjunto de crenças e eu outro, se eu sou um assassino coletivo e você um pacifista? Ser amigo subentende relacionamento em trabalho, em pensamentos; mas existirá qualquer relação entre o homem em ilusão e aquele que é livre?  O homem livre pode tentar estabelecer algum tipo de relacionamento com aquele em cativeiro; mas aquele que está em ilusão não pode ter um relacionamento com o homem livre.

O separado, prendendo-se à sua separação, tenta estabelecer um relacionamento com outros que também estão fechados em si mesmos; tais tentativas, invariavelmente, criam conflito e dor. Para evitá-la, os inteligentes inventam a tolerância, cada um examinando sua barreira autolimitante e tentando ser gentil e generoso. A tolerância é da mente, não do coração. Você fala de tolerância quando ama? Mas quando o coração está vazio a mente o enche com seus mecanismos astutos e seus medos. Não existe comunhão onde há tolerância.

Não existe um caminho para a verdade. A verdade deve ser descoberta, mas não existe uma fórmula para seu descobrimento. O que é formulado não é verdadeiro. Você deve partir para o mar inexplorado, e o mar inexplorado é você mesmo. Você deve partir para se descobrir, mas não segundo algum plano ou padrão, porque aí não há descobrimento. O descobrimento traz alegria – não a alegria lembrada, comparativa, mas a alegria sempre nova. O autoconhecimento é o início da sabedoria em cujo silêncio e tranquilidade existe o incomensurável.

 
(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Política


Jiddu Krishnamurti (*)
 
BEM ALTO NAS MONTANHAS chovera todo o dia. Não era uma chuva fina, leve, mas um daqueles aguaceiros torrenciais que levam as estradas e desenterram as árvores nas colinas, causando deslizamentos de terra e turbulências nos rios, que ficam calmos em algumas horas.  Um menininho, molhado até os ossos, brincava em uma lagoa rasa e não prestava a menor atenção à voz zangada e estridente de sua mãe. Uma vaca descia pela estrada lamacenta enquanto subíamos. As nuvens pareciam se abrir e cobrir a terra de água.  Estávamos encharcados e retiramos a maioria de nossas roupas, e o contato da chuva com a pele era agradável. A casa situava-se bem alto na encosta da montanha e a cidade estava abaixo. Um vento forte soprava do oeste, trazendo mais nuvens escuras e furiosas.

Havia uma lareira na sala e várias pessoas estavam aguardando para discutir temas. A chuva, batendo nas janelas, formara uma grande poça no chão e a água descia até pela chaminé, fazendo o fogo crepitar.

Ele era um político muito famoso, realista, profundamente sincero e ardentemente patriota. Não era intolerante nem interesseiro, sua ambição não era dirigida a si mesmo, mas a uma idéia e ao povo.  Não era um mero pregador empolado e eloquente ou um caçador de votos; ele sofrera pela causa e, curiosamente, não era amargo. Parecia mais um erudito que um político. Mas a política era o alento da sua vida e o seu partido o obedecia, embora com certo nervosismo. Ele era um sonhador, mas pusera tudo de lado pela política. Seu amigo, o economista-chefe, também estava lá; tinha teorias complicadas e temas voltados para a distribuição de enormes receitas. Parecia conhecido dos economistas tanto da direita quanto da esquerda, e tinha suas próprias teorias para a salvação econômica da humanidade. Falava com facilidade e não havia hesitação nas palavras. Ambos haviam discursado para grandes multidões.

Você já percebeu, nos jornais e nas revistas, a quantidade de espaço dado aos políticos, ao que dizem os políticos e às suas atividades? Claro, são fornecidas outras notícias, mas as notícias políticas predominam; a vida econômica e política tornou-se primordial. As circunstâncias exteriores – conforto, dinheiro, posição social e poder – parecem dominar e moldar nossa existência. A exibição exterior – o título, os trajes, a saudação, a bandeira – tornou-se cada vez mais importante e o processo total da vida foi esquecido ou deliberadamente posto de lado. É tão mais fácil lançar-se em uma atividade social e política do que compreender a vida como um todo. Estar associado a qualquer pensamento organizado, a atividades políticas ou religiosas, oferece uma fuga respeitável da mediocridade e da labuta da vida diária. Com um pequeno coração você pode falar de coisas importantes e dos líderes populares; pode ocultar sua superficialidade com as frases feitas dos assuntos mundiais; sua mente inquieta pode se acomodar feliz e com apoio popular para propagar a ideologia de uma nova ou de uma velha religião.

A política é a conciliação dos efeitos; e como a maioria de nós está preocupada com os efeitos, o exterior assumiu significado dominante. Pela manipulação de efeitos esperamos produzir ordem e paz; mas, infelizmente, não é tão simples assim. A vida é um processo total, tanto interior quanto exterior; e o exterior definitivamente afeta o interior, mas o interior invariavelmente sobrepuja o exterior. O que você é, você cria exteriormente. O exterior e o interior não podem ser separados e mantidos em compartimentos vedados, pois interagem constantemente um com o outro, mas o anseio interior, as buscas e os motivos ocultos são sempre mais poderosos. A vida não depende da atividade política ou econômica; a vida não é uma simples exibição exterior, assim como a árvore não é a folha ou o galho. A vida é um processo total cuja beleza só pode ser descoberta na sua integração. Essa não acontece no nível superficial das conciliações políticas e econômicas; ela se encontra além de causas e efeitos.

Por jogarmos com causas e efeitos e nunca irmos além deles, exceto verbalmente, nossas vidas são vazias, sem muito significado. É por esse motivo que nos tornamos escravos da empolgação política e do sentimentalismo religioso. Só existe esperança na integração dos vários processos a partir dos quais somos formados. Essa integração não acontece por meio de qualquer ideologia ou quando se obedece a qualquer autoridade em especial, política ou religiosa; ela acontece apenas por meio da percepção ampla e profunda. Essa percepção deve chegar aos níveis mais profundos da consciência e não se contenta com respostas superficiais.  


(*)   Um dos textos do livro:  Comentários sobre o viver.  Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti. Rio de Janeiro: Nova Era, 2007