Jiddu Krishnamurti (*)
ELE ERA UM ESTUDIOSO, falava muitos idiomas e era viciado em
conhecimento como uma outra pessoa o é em bebidas alcoólicas. Estava
incessantemente citando terceiros para apoiar suas próprias opiniões. Interessava-se
por ciências e artes, e quando dava sua opinião, era com um movimento de cabeça
e um sorriso que transmitia de um modo sutil que não era meramente sua opinião,
mas a verdade final. Disse que tinha suas próprias experiências, abalizadas e
convincentes para ele. “Você também tem suas experiências, mas não pode me
convencer”, disse ele. “Você segue o seu
caminho, e eu o meu. Existem caminhos diferentes para a verdade, e todos vamos
nos encontrar lá um dia.” Era amistoso, de uma forma distante, mas firme. Para
ele os Mestres, embora não gurus reais e visíveis, eram uma realidade, e
tornar-se seu discípulo era fundamental. Ele e vários outros designavam como
discípulos àqueles que estivessem dispostos a aceitar esse caminho e a
autoridade deles; mas ele e seu grupo não pertenciam àqueles que, pelo
espiritualismo, descobriam guias entre os mortos. Para encontrar os Mestres
você deve servir, trabalhar, sacrificar-se, obedecer e praticar certas
virtudes; e, claro, a crença era necessária.
Estar preso à ilusão é fiar-se na
experiência como um meio de descobrir o que é.
O desejo e o anseio condicionam a experiência; e depender da experiência como
um meio para o entendimento da verdade é buscar um modo de auto-engradecimento.
A experiência jamais pode trazer libertação da dor; a experiência não é uma
resposta adequada ao desafio da vida. O desafio deve ser enfrentado de modo
novo, fresco, pois o desafio é sempre novo. Para entender o desafio de forma
adequada, a memória condicionada da experiência deve ser posta de lado, as
reações de prazer e dor dever ser profundamente entendidas. A experiência é um
impedimento à verdade, pois ela pertence ao tempo, é o resultado do passado; e
como pode a mente, que é o resultado da experiência, do tempo, entender o que é
atemporal? A verdade da experiência não depende de idiossincrasias e fantasias
pessoais; a verdade disso e percebida apenas quando há atenção sem censura,
justificativa ou qualquer forma de identificação. A experiência não é uma
abordagem à verdade; não existe “sua experiência” ou “minha experiência”, mas
apenas a compreensão inteligente do problema.
Sem autoconhecimento a experiência
produz ilusão; com autoconhecimento a experiência, que é a resposta ao desafio,
não deixa um resíduo acumulativo como memória. O autoconhecimento é a
descoberta momento a momento dos mecanismos do Eu, de suas intenções e buscas,
seus pensamentos e desejos. Jamais pode haver “sua experiência” e “minha
experiência”; o próprio termo “minha experiência” indica ignorância e aceitação
da ilusão. No entanto, muitos gostam de viver em ilusão, pois há grande satisfação
nela; é um refúgio particular que nos estimula e dá um sentimento de
superioridade. Se tenho capacidade, talento ou astúcia, torno-me um líder, um
intermediário, um representante daquela ilusão; e como a maioria das pessoas
adora evitar o que é, há a construção
de uma organização com propriedades e rituais, com votos e reuniões secretas. A
ilusão é vestida de acordo com a tradição, sendo mantida dentro do campo da
respeitabilidade; e como a maioria busca poder de uma forma ou de outra, o
princípio hierárquico é estabelecido, o iniciante e o iniciado, o discípulo e o
Mestre, e mesmo entre os Mestres existem níveis de progresso espiritual. A
maioria adora explorar e ser explorado, e esse sistema oferece os meios, quer
sejam ocultos ou claros.
Explorar é ser explorado. O desejo de
usar outros para suas necessidades psicológicas produz dependência, e quando
você depende, precisa manter, possuir; e o que você possui, possui você. Sem
dependência, sutil ou evidente, sem possuir coisas, pessoas e ideias, você é
vazio, uma coisa sem importância. Você quer ser algo, e para evitar o medo
atormentador de ser nada você pertence a essa ou àquela organização, a essa ou
àquela ideologia, a essa igreja ou àquele templo; assim você é explorado e, por
sua vez, explora. Essa estrutura hierárquica oferece excelente oportunidade de
auto-expansão. Você pode querer fraternidade, mas como pode haver fraternidade
se você está buscando distinções espirituais? Você pode rir dos títulos
mundanos; mas quando você admite o Mestre, o salvador, o guru no domínio do
espírito, não está persistindo na atitude mundana? Podem haver divisões
hierárquicos ou níveis de progresso espiritual na compreensão da verdade, na percepção
de Deus? O amor não admite divisão. Ou você ama ou não ama; mas não faça da
falta de amor um processo arrastado cuja finalidade é o amor. Quando você sabe, você não ama; quando você está
atentamente desprovido de escolha quanto a esse fato, há aí uma possibilidade
de transformação; mas diligentemente cultivar essa distinção entre o Mestre e o
discípulo, entre aqueles que conseguiram e aqueles que não conseguiram, entre o
salvador e o pecador, é negar o amor. O explorador, que por sua vez é
explorado, encontra uma feliz zona de caça nesse ambiente escuro e ilusório.
A separação entre Deus ou a realidade e
você é produzida por você, pela mente que se prende ao conhecido, à certeza, à
segurança. Essa separação não pode ser ligada por uma ponte; não existe ritual,
nenhuma disciplina, nenhum sacrifico que possa levá-lo a atravessá-lo; não
existe nenhum salvador, nenhum Mestre, nenhum guru que possa levá-lo ao real ou
destruir essa separação. A divisão não é entre o real e você; é em você, é o conflito de desejos
opostos. O desejo cria seu próprio oposto; e a transformação não é uma questão
de estar centrado em um desejo, mas de estar livre do conflito que o anseio
causa. O anseio, em qualquer nível do ser de um indivíduo, gera mais conflito,
e daí tentamos fugir de todas as maneiras possíveis, o que apenas aumenta o
conflito, tanto interno quanto externo. Este não pode ser dissolvido por uma
outra pessoa, por mais excelente que seja, nem por qualquer mágica ou ritual.
Estes podem lhe anestesiar de forma agradável, mas, quando acordar, o problema
ainda existirá. Mas a maioria não quer acordar, e assim vivemos em ilusão. Com
a dissolução do conflito há tranquilidade, e só então a realidade pode tomar
forma. Os Mestres, salvadores e gurus não são importantes, mas o que é
essencial é entender o crescente conflito do desejo; e esse entendimento vem
apenas por meio do autoconhecimento e da atenção constante aos movimentos do
Eu.
A autopercepção é trabalhosa, e visto
que a maioria prefere um caminho fácil e ilusório, trazemos à existência a autoridade
que dá forma e padrão à nossa vida. Essa autoridade pode ser coletiva, o Estado;
ou pode ser pessoal, o Mestre, o salvador, o guru. A autoridade de qualquer
tipo é cegante, leva a ações irrefletidas; e como a maioria acha que ser
ponderado é um esforço, entregamo-nos à autoridade.
A autoridade produz poder e o poder
sempre se torna centralizado e, portanto, totalmente corruptível; ele corrompe
não apenas quem o empunha, mas também aquele que o segue. A autoridade do conhecimento
e da experiência perverte, quer seja conferida ao Mestre, a seu represente ou
ao padre. É sua própria vida, esse conflito aparentemente interminável, que é
significante, não o padrão ou o líder. A autoridade do Mestre e do padre o
afasta da questão central, que é o conflito dentro de si mesmo. O sofrimento
nunca pode ser entendido e dissolvido por meio da busca por um modo de vida.
Tal busca é mero evitar o sofrimento, a imposição de um padrão, que é fuga; e o
que é evitado apenas inflama, trazendo mais calamidade e dor. O entendimento de
si mesmo, por mais doloroso ou passageiramente prazeroso, é o início da
sabedoria.
Não existe caminho para a sabedoria. Se
houver um caminho, a sabedoria será o formulado, já conhecida, já imaginada.
Pode a sabedoria ser conhecida ou cultivada? É uma coia a ser aprendida,
acumulada? Se for, então se torna mero conhecimento, uma coisa da experiência e
dos livros. A experiência e o conhecimento são uma cadeia continua de reações
e, portanto, nunca podem compreender o novo, o fresco, o não-criado. A
experiência e o conhecimento, sendo contínuos, formam um caminho para suas
próprias projeções, e desse modo estão constantemente tolhendo. A sabedoria é o
entendimento do que é de momento a
momento, sem o acúmulo de experiências e conhecimento. O que é acumulado não dá
liberdade para entender, e sem liberdade não há descobrimento; e é essa
descoberta incessante que cria a sabedoria. Ela é sempre nova, sempre fresca, e
não há meios de acumulá-la. Os meios destroem o frescor, a novidade, a
descoberta espontânea.
Os muitos caminhos para uma realidade
são a invenção de uma mente intolerante; são o resultado de uma mente que
cultiva a tolerância. “Eu sigo meu caminho e você segue o seu, mas sejamos
amigos e nos encontraremos finalmente.” Você e eu nos encontraremos se você
estiver indo para o norte e eu para o sul? Podemos ser amigos se você tem um
conjunto de crenças e eu outro, se eu sou um assassino coletivo e você um
pacifista? Ser amigo subentende relacionamento em trabalho, em pensamentos; mas
existirá qualquer relação entre o homem em ilusão e aquele que é livre? O homem livre pode tentar estabelecer algum
tipo de relacionamento com aquele em cativeiro; mas aquele que está em ilusão
não pode ter um relacionamento com o homem livre.
O separado, prendendo-se à sua
separação, tenta estabelecer um relacionamento com outros que também estão
fechados em si mesmos; tais tentativas, invariavelmente, criam conflito e dor.
Para evitá-la, os inteligentes inventam a tolerância, cada um examinando sua
barreira autolimitante e tentando ser gentil e generoso. A tolerância é da
mente, não do coração. Você fala de tolerância quando ama? Mas quando o coração
está vazio a mente o enche com seus mecanismos astutos e seus medos. Não existe
comunhão onde há tolerância.
Não existe um caminho para a verdade. A
verdade deve ser descoberta, mas não existe uma fórmula para seu descobrimento.
O que é formulado não é verdadeiro. Você deve partir para o mar inexplorado, e
o mar inexplorado é você mesmo. Você deve partir para se descobrir, mas não
segundo algum plano ou padrão, porque aí não há descobrimento. O descobrimento
traz alegria – não a alegria lembrada, comparativa, mas a alegria sempre nova.
O autoconhecimento é o início da sabedoria em cujo silêncio e tranquilidade
existe o incomensurável.
(*) Um dos textos do livro: Comentários sobre o viver. Breves textos – Volume 1 /Jiddu Krishnamurti.
Rio de Janeiro: Nova Era, 2007
Boa noite Roberto,
ResponderExcluirBastante instigante e sintomático esse texto de JK que postou.
Não posso falar por vc, mas em várias passagens me vi refletido nas palavras. Hoje talvez me considere um pouco mais livre que a algum tempo atrás, que nem é tanto tempo assim. Em alguns pontos JK meio que "enfia o dedo na ferida aberta", partindo do pressuposto que para bom entendedor meias palavras bastam.
Será que sou uma pessoa livre? A subjetividade destes aspectos me inquietam. A noção de cativeiro também é bastante relativa e me suscita outro universo de indagações.
Venho buscando minha carta de alforria, não sei se a duras penas ou não, o fato é que pelo ou menos tento não me contentar com as verdades reveladas, mesmo aquelas trazidas por JK. Na medida do possível tenho procurado fazer um "mix" do pouco que consigo assimilar para construir alguma sabedoria baseada no princípio da contradição, sem vícios ou predisposições, mas a luz de algumas reflexões.
Entendi que não posso dar-me ao luxo de ignorar ou desprezar qualquer suposição, venho buscando adotar um conceito holístico sobre minhas dúvidas, tudo e qualquer coisa pode e deve ser considerada, o contrário, constituiria o preconceito, a aversão deliberada a qualquer outra fonte ideológica. Ser eclético neste sentido é mais que salutar, para mim permitir-se ao frescor do novo, como assinala JK.
Grande abraço,
Luiz Otávio
Boas tardes Luiz,
ExcluirConsinto com você sobre se vê refletido nas palavras de JK. Penso que a grande virtude das manifestações dele é nos remeter para dentro de nós mesmos.
Você se indaga se é livre, falando por mim sei que ainda não sou. Na verdade estou longe de me livrar de todos os meus condicionamentos, mas como penso que ser livre é um problema subjetivo, assim, vou tocando o meu barco do jeito que dá.
Quanto à questão de elaborar um “mix” para consumo próprio, penso que é isso mesmo o que está por trás das manifestações de JK. Ou seja, cada um de nós vai construindo seu próprio caminho, ao caminhar com atenção passiva voltada para o próprio Eu.
Hoje estou convicto que a “coisa” é bastante simples, mais até do que supomos. A “coisa” só é FANTÁSTICA em nossa imaginação ou aos domingos na Rede Globo, kkkkkkk!
Abração,
Roberto Lira
KKKKK. Consinto meu caro Roberto. E vamos que vamos.
ResponderExcluirGrande abraço,
Luiz Otávio